Potes de tinta, pincéis, cola, papel e estiletes são todo o material necessário para transformar papelão em capas de obras de autores como Alan Pauls, Fabián Casas, Glauco Mattoso e Haroldo de Campos. Esta é a proposta de Eloísa Cartonera, uma editora independente e auto-gerida, criada em 2003, ano em que a Argentina sofria as repercussões do colapso político-econômico do país em 2001.
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Aldo Jofre Osorio/Opera Mundi
Capas de mais de 200 títulos da literatura latina são produzidas pela cooperativa portenha, criada em 2003
A ideia era simples: comprar papelão de catadores por valores mais justos do que os geralmente oferecidos e transformá-lo em livros. Cortados e pintados à mão de um a um, o material então inutilizado, destinado a acumular mais detrito nos lixões da cidade, deram título a mais de 200 obras de autores latino-americanos, vendidas a preços acessíveis à população.
Idealizada pelos artistas argentinos Washington Cucurto e Javier Barilaro em 2003, a livraria, que também funciona como estúdio da produção artesanal em série, fica a somente dois quarteirões da Bombonera, o estádio de futebol mais famoso do país. Apesar da localização turística, o lugar ainda é pouco visitado por estrangeiros.
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“Geralmente quem vem aqui já conhece nossa história. Os turistas que vêm comprar uma camiseta do Boca Juniors geralmente não captam a sensibilidade do nosso projeto”, explica Alejandro Miranda, um chileno que, de tanto frequentar o local, começou a trabalhar com a cooperativa há três anos.
Sem parar de cortar papelão por um minuto enquanto conversava com o Opera Mundi, Alejandro, que dedica pelo menos quatro horas de seu dia ao ofício de confeccionar as obras literárias, conta animado sobre a evolução da editora. Tudo começou com uma pequena livraria no bairro de Almagro, com a publicação do livro Pendejo (Pentelho, em português), da escritora argentina Gabriela Bejerman.
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A equipe da editora Eloísa Cartonera é quem elabora e confecciona as capas feitas a partir do papelão
Inicialmente, as capas das obras eram confeccionadas pelos próprios catadores que vendiam o papelão à editora. Com a dificuldade de fomentar uma adesão constante dos trabalhadores, a cooperativa mudou a sistemática e hoje simplesmente adquire o material coletado por eles, e formou seu próprio grupo de trabalho, hoje integrado por oito membros.
De lançamento em lançamento, as obras do catálogo de Eloisa Cartonera hoje chegam a cerca de 200 títulos, assinados por autores chilenos, peruanos, uruguaios, mexicanos, costa-riquenses e venezuelanos. A editora se dedica à publicação de livros de romance, poesias, contos, relatos, micro-contos, literatura e poesia infantis, estes últimos complementados com delicadas ilustrações e páginas coloridas.
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E o Brasil?
“Publicamos até uma obra sobre os poemas marginais brasileiros nos anos 1970”, conta Alejandro, retirando da estante o livro El Brasil de los años 70: la “poesía marginal”, que inclui versos de poetas como Roberto Piva, Waly Salomão, Chacal e Cacaso. Entre os demais brasileiros que concederam os direitos de suas obras à editora estão Haroldo de Campos, Glauco Mattoso e Douglas Diegues.
As capas dos livros, pintadas a mão são elaboradas com tintas de cores vibrantes, que quando dispostas nas estantes repletas de livros, atraem atenção de transeuntes que caminham nas ruas onde predomina o monocromático marrom das árvores secas e tons neutros das fachadas envelhecidas das casas do bairro La Boca, para onde se mudou a editora há cinco anos.
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Instalado no tradicional e turístico bairro de La Boca, a editora Eloísa Cartonera recebe poucas visitas de estrangeiros
Passar o dia em meio a este ambiente multicolorido, adornado com bandeiras do Boca e imagens de Che Guevara, Evo Morales, Evita e Perón, foi a opção de Miriam Merlo, que antes percorria as ruas de Buenos Aires, na tentativa de acumular quilos de papelão necessários para sua sobrevivência. Após conhecer o projeto, trocou o carrinho pelas tintas e pelos pincéis, nesta editora que substitui as máquinas pelas pessoas.
Com o grande aumento dos títulos publicados, o conteúdo dos livros, antes fotocopiado, hoje é impresso em uma antiga gráfica, acomodada no canto do recinto, sem ganhar protagonismo na produção artesanal. Dessa forma, cada livro é uma obra de arte e objeto exclusivo.
A finalidade inicial dos criadores de Eloísa Cartonera, de elaborar obras literárias que chegassem às mãos de todos – realidade até então não fomentada pelas editoras contemporâneas -, e de aumentar o rendimento dos trabalhadores que ganham a vida coletando papelão nas ruas da cidade, despertou o interesse pela criação de diversas editoriais de catadores em toda a América Latina.
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No Brasil, um coletivo de trabalho de catadores e filhos de catadores foi criado pela artista Lúcia Rosa, em 2007, com o nome de Dulcinéia Catadora. No Chile, a cooperativa foi denominada Animita Cartonera, no Peru, Sarita Cartonera e, na Bolívia, Yerba Mala Cartonera, Mandragora Cartonera e Nicotina Cartonera.
A editora argentina também inspirou a produção dos livros com papelão no Paraguai (Felicita Cartonera e Yiyi Jambo), no Uruguai (La Propia Cartonera), no México (La Cartonera, Santamuerte Cartonera e La Ratona Cartonera) e até mesmo na Espanha, que seguiu a tendência latino-americana, com as cooperativas Meninas Cartoneras e Editorial Ultramarina Cartonera.
A editora argentina Eloisa Cartonera pode ser visitada de segunda a sábado, das 14h às 18h, na rua Aristóbulo del Valle, 666, a apenas duas quadras do estádio do Clube Atlético Boca Juniors, em Buenos Aires. O preço das obras varia de 10 a 20 pesos argentinos (de R$ 4 a R$ 8).
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