“Uma vez meu carro quebrou justo aqui. Tive de esperar três dias até ser resgatado, sem comida nem água”, comenta o motorista enquanto dirige por uma estrada interminável de terra deserta, passando a toda velocidade ao lado de tarântulas e serpentes venenosas. Este é o Chaco paraguaio, a segunda selva mais importante da América e o único lugar onde ainda há tribos não contatadas fora da Amazônia, um território tão inóspito e quente (as temperaturas chegam aos 50º C no verão) que nem sequer os conquistadores espanhóis conseguiram penetrar.
Alfonso Daniels/Opera Mundi
Etacore, líder dos índios ayoreo, e recebeu promessas dos brancos, mas só encontrou doenças e a fome
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O famoso naturalista britânico David Attenborough descreveu este inferno verde como “um dos últimos lugares selvagens que restam no mundo”. Agora, no entanto, uma febre de compra de terras desflorestou um milhão de hectares, quase 10% desta região virgem, em apenas quatro anos, segundo imagens de satélites. Cruzam a fronteira principalmente brasileiros, investidores europeus e cristãos menonitas que arrasam os bosques com escavadeiras para transformá-los em pastos e exportar carne para a Europa, atraídos pelos altos preços do produto e por uma terra dez vezes mais barata do que em países vizinhos como Brasil e Argentina.
Em nenhum lugar essa mudança é mais sentida do que na pequena aldeia de Ijnapui, no coração do Chaco, uma espécie de ilha florestal rodeada por imensas fazendas de gado e uma das apenas três comunidades de índios ayoreo que decidiram voltar ao que resta de suas terras ancestrais. Cerca de 200 pessoas chegaram no local há cinco anos, fugindo do desemprego e da desnutrição infantil que afligem os miseráveis povoados de choças em torno das colônias dos brancos, onde vive hoje a maioria dos índios ayoreo.
“Eu tinha sete anos quando saímos do bosque. Agora tenho 46. Um sacerdote salesiano enviou um ayoreo para nos convencer a sair”, contou ao Opera Mundi Carlos Etacore, o líder da comunidade, ao lado dos barracos de madeira que formam o acampamento, enquanto um grupo se agacha diante de uma fogueira. “Ele nos disse que na cidade dos brancos não falta água nem comida, prometeu muitas coisas, que não faltam medicamentos, e era pura mentira, não encontramos nada. Em três anos, minha mãe morreu de sarampo.”
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Mulheres da tribo ayoreo no povoado de Ijnapui, no coração do Chaco paraguaio
Muitos aqui estão inchados por causa de uma dieta inadequada e têm tão pouca comida que, para jantar, cozinharam o que eu lhes trouxe de presente: um par de quilos de carne, um pacote de macarrão e um pouco de arroz. Eles se mantêm a duras penas queimando árvores para produzir carvão, que depois vendem a um dólar o quilo aos brancos (estes o empacotam e exportam para a Alemanha, onde o produto é usado em churrascos), enquanto as mulheres tecem bonitas bolsas e pulseiras coloridas que não conseguem vender em lugar nenhum.
Desflorestamento
“O desflorestamento é muito grave aqui. Este é o único pedaço de bosque que resta”, comenta Etacore, resignado. “Daqui até 30 quilômetros adiante está tudo destruído. Do outro lado, há 10 quilômetros desmatados. Estão destruindo bosques agora mesmo. Estamos ilhados.”
Isso reflete o que ocorre no restante do Chaco, afirma Elías Peña, um proeminente cientista paraguaio. Ele adverte que, nesse ritmo, os bosques chaquenhos desaparecerão em cerca de 20 anos. “No Paraguai, a lei florestal é obsoleta, remonta aos anos 1970 e permite desmatar 75% das terras. Além disso, o sistema legal é muito fraco”, afirma.
“Isso permite que um proprietário de terras, por exemplo, desmate três quartos de um terreno de 100 mil hectares. Depois, ele vende os 25 mil hectares restantes a outra pessoa, que desmata 75% desta área, e assim por diante. Isso explica por que 90% da floresta do leste paraguaio desapareceram nos últimos 20 anos, e é isso o que está acontecendo no Chaco agora.”
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Latifundiários que passaram a vida toda na região veem a chegada de estrangeiros com temor, como Heinrich Dueck
Ele acrescenta que os brasileiros são os mais agressivos no desmatamento. Eles chegam atravessando o rio Paraguai, que delimita a fronteira, principalmente a partir de Mato Grosso, onde a produção de soja deslocou o gado, motivando a busca de novos terrenos. A oportunidade de negócios é tão grande, afirmam alguns especialistas, que mesmo pagando as multas é rentável desmatar.
'Ausência de Estado'
As autoridades admitem que há uma febre de compra de terras por estrangeiros, mas dizem que ampliar a área de pastagem é vital para a economia regional. Walter Stockl, governador de Boquerón, o maior estado paraguaio no Chaco, chega a acusar ONGs estrangeiras de tentar impedir as exportações de carne do Paraguai. No entanto, ele se recusa a identificar as organizações e, mais adiante na conversa, admite os problemas: “Há grandes investidores que vêm para cá e se aproveitam da ausência do Estado. A presença do Estado começou com a introdução de governos departamentais em 1993, ainda estamos engatinhando.”
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Os latifundiários que passaram a vida toda nesta região veem a chegada de estrangeiros com temor. Fazendeiros como Heinrich Dueck, um cristão menonita de 58 anos cuja família chegou na primeira onda de imigrantes menonitas, nos anos 1920.
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Fábrica da cidade de Filadelfia, onde índios vendem carvão para ser vendido na Alemanha
“Quando compramos essa terra, encontramos tribos não contatadas. Meu irmão mais velho estava abrindo um caminho com uma escavadeira e um nativo surgiu de repente e estendeu um jarro. Meu irmão o encheu de água e se foi. Não trocaram uma só palavra”, explica no dialeto alemão dos menonitas paraguaios, enquanto caminhamos por seu rancho de 500 hectares.
Apesar de ter passado a vida toda aqui, Dueck diz que a febre das terras o pegou de surpresa, motivando-o a comprar um segundo lote de 2,1 mil hectares. “Os estrangeiros vêm aqui, em sua maioria brasileiros e europeus, compram parcelas enormes e provocam uma reação em cadeia: nossa gente vê que não há terra suficiente e compra, compra e compra, gerando uma febre de terras. Há quatro anos, paguei 70 dólares por hectare ao comprar meu novo lote. Há 15 anos, teria pagado 20 dólares. Agora, teria de pagar 200 dólares e, em alguns casos, estão pagando 500. Os preços continuarão aumentando, é uma loucura.”
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