Desmatamento na Sibéria ameaça um dos ecossistemas mais ricos do mundo
Desmatamento na Sibéria ameaça um dos ecossistemas mais ricos do mundo
Fileiras intermináveis de vagões repletos de troncos de árvore se acumulam na estação de trem da cidade siberiana de Dalnerecensk, mais de 5 mil quilômetros a leste de Moscou, quase na Coreia do Norte, sob o ruído ensurdecedor de alto-falantes anunciando a chegada do próximo Trans-Siberiano. A madeira espera a hora de cruzar a fronteira com a China, onde será usada na construção civil ou transformada em móveis de jardim e outros itens para a venda em lojas no Ocidente.
No entanto, mais de um terço das toras cruza a fronteira ilegalmente, no que muitos qualificam de roubo do século - um movimento que dobrou entre 2005 e 2007, segundo o governo da Rússia. Máfias russas e chinesas controlam este meganegócio que, no atual ritmo de corte, ameaça erradicar as florestas russas dentro de 20 a 30 anos, advertem os especialistas. Seria o fim do ecossistema mais rico do Hemisfério Norte - que inclui o último reduto dos tigres siberianos - e do sustento de milhões de pessoas.
Este é um problema que afeta a todos, já que a Rússia possui as maiores florestas do mundo - 800 milhões de hectares, comparados com 550 milhões da Amazônia -, concentradas principalmente na Sibéria, uma região que vai dos Montes Urais até o Mar do Japão, tocando o Ártico. Daqui saem dois terços dos troncos consumidos pelo insaciável vizinho, quantidade nada desprezível se considerarmos que seis de cada dez toras cortadas no mundo - incluindo o Brasil - vão parar na China.
O gigante asiático processa as toras e as vende no exterior, consolidando a posição de maior exportador de produtos de madeira do mundo. É uma indústria que partiu do zero e chegou a 16,4 bilhões de dólares em meados desta década, desde a proibição do corte no território chinês depois das devastadoras inundações de 1998.
Devastação invisível aos olhos
Caminhando pela plataforma da estação de trem de Dalnerecensk - principal ponto de passagem de toras russas para a China -, sou acompanhado por Anatoly Lebedev, ex-agente da KGB convertido há 20 anos em ativista ambiental. Ele explica que, diferentemente da Amazônia, a devastação em muitas áreas da Sibéria é difícil de ser percebida a olho nu, já que os cortadores extraem só as árvores mais valiosas, como pinheiro coreano, carvalho e tília. "No norte da Sibéria, eles deixam um rastro desolador, mas aqui a floresta parece bem, embora na verdade esteja morrendo, esvaziando, é um escândalo", afirma, enquanto vemos passar o ruidoso Trans-Siberiano.
Muitos "barões" da madeira ilegal russos construíram luxuosas mansões a poucos minutos daqui, no centro da cidade, junto a blocos de apartamentos semidestruídos da época soviética. Nos arredores, o panorama é desolador: a maior parte dos campos está abandonada e o único rastro das antigas e poderosas fazendas coletivas são edifícios em ruínas cobertos de mato. Como no restante da Sibéria, o consumo de drogas como maconha é uma praga e a população depende do corte de árvores para sobreviver.
Mas os mafiosos chineses são os grandes beneficiários deste negócio. O mais importante deles é Sun Laijun, dono da empresa Longjiang Shanglian. Sua base é a cidade chinesa de Suifenhe, antigo posto fronteiriço czarista que abriga mais de 400 serrarias no outro lado da fronteira. Laijun fundou a companhia há quase uma década e agora importa um de cada dez troncos que chegam da Rússia em mais de 600 vagões de trem por dia.
Membros da ONG Agência de Investigação Ambiental (EIA, na sigla em inglês), de Washington, liderados por Alexander von Bismarck - descendente direto do chanceler alemão e cujo avô foi um dos poucos aristocratas a opor-se a Hitler - se fizeram passar por empresários madeireiros e conseguiram se reunir com o irmão mais novo do proprietário, Laiyong.
O empresário admitiu que paga subornos de milhões de dólares em espécie, com a ajuda de intermediários, a mafiosos russos e à polícia para poder exportar madeira sem pagar impostos. "Há custos de transporte, pagamentos de alfândega, proteção à máfia", comentou Laiyong, sem perceber que era filmado. "Até a polícia atua como a máfia", interrompeu um colaborador do empresário.
A EIA denuncia que muitos dos produtos fabricados por esta e outras empresas chinesas vão parar em centros comerciais ocidentais como a rede de lojas de móveis Ikea e o gigante norte-americano do varejo Wal-Mart. "Existe pressão sobre as florestas no noroeste da Rússia, próximo à Escandinávia, mas o grande problema está no extremo oriente da Sibéria, onde a máfia é especialmente virulenta", comentou Bismarck, por telefone.
Apesar da escala enorme do negócio, são pequenas brigadas de cerca de quatro pessoas, com a ajuda de caminhões, que destroem ilegalmente as florestas siberianas, esvaziando-as como se fossem formigas e usando trilhas herdadas da era soviética. A maioria trabalha de forma autônoma e vende os troncos a serrarias controladas pela máfia.
“Legalização” sob propina
Depois de várias tentativas, um líder destas brigadas - um jovem ex-policial que veste um agasalho e diz chamar-se Yevgeni - aceita falar com a reportagem do Opera Mundi para explicar como funciona o negócio. O encontro é numa clareira em plena floresta na região de Primorski, a mais afetada pelo corte. "Corra, entre no carro, rápido! Se me virem conversando com um jornalista, me dão um tiro", exclama ele quando me aproximo.
Yevgeni explica que os agentes de tráfego cobram entre 100 e 200 dólares por caminhão cheio de troncos, dependendo do porte ou não de uma permissão. Um ótimo negócio, pois se paga até dez vezes mais por um só tronco de pinho coreano. Assim que a carga é deixada na serraria, conta ele, os chefes "legalizam" as toras, subornando funcionários locais de alto escalão para obter a documentação oficial. "Aqui a maioria é corrupta - os inspetores, a polícia, todos se protegem entre si", sentencia.
"Meu chefe tem uma pessoa encarregada de silenciar quem abrir a boca. Há pouco tempo, incendiaram a garagem de uma pessoa com o carro dentro e fabricaram provas contra outra a fim de mandá-la para a cadeia", conta ele, enquanto mostra no celular as imagens de um filhote de urso que resgatou das mãos de caçadores clandestinos, olhando pelo retrovisor para conferir se alguém nos segue. "Se pudesse, eu mataria todos eles, mas aqui não há outro trabalho. Minha família e outras quatro morreriam de fome sem isso".
Os guardas florestais com quem conversei coincidem ao afirmar que pouco podem fazer contra os cortadores ilegais, pois estes costumam andar armados, usam serras elétricas que não emitem ruído a mais de 10 metros e mantêm vigias no caminho com telefones via satélite. Além disso, o governo de Vladimir Putin aboliu o Serviço Florestal em 2001, demitindo quase todos os guardas sem criar uma alternativa além da subordinação a outro ministério.
Alexander Vitrik, responsável pela inspeção na zona, afirma que, nas raras ocasiões em que ocorrem prisões - como a do ex-prefeito de Vladivostok, personagem gorducho conhecido como “Ursinho Puff” -, a forte pressão vinda do alto escalão do governo impede os julgamentos.
"Não posso dar nomes, mas gente muito influente os protege", diz. Ele admite que há guardas corruptos, mas, com um gesto, indica que prefere não falar mais nada. "A única solução é o governo federal aumentar os impostos [de exportação de madeira para a China]. Do contrário, isto logo se transformará num deserto, como a China".
Leia a parte 2:
Falta de árvores põe em risco sobrevivência de tigres siberianos
Créditos das fotos:
ONG britânica EIA - Environmental Investigation Agency (foto do alto)
ONG russa BROC, Roman Fadeev
Patentes na OMC é uma derrota para os países do Sul Global
Pandemia de covid-19 reativou a debate sobre a quebra de patentes para medicamentos e vacinas. Apesar de sua união em torno do tema, países subdesenvolvidos sofreram uma derrota
No dia 17 de junho, saiu fumaça branca das chaminés da Organização Mundial do Comércio (OMC). A entidade, responsável pela regulação de patentes internacionais, anunciou que chegara a uma conclusão sobre as vacinas contra o coronavírus. Tratava-se do pedido de isenção do acordo TRIPS – sigla em inglês para Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. Firmado na virada do século, tal compromisso obriga os países-membros da OMC a adotar padrões mais rigorosos de proteção patentária. Consequentemente, encarece o acesso às inovações tecnológicas, inclusive no setor farmacêutico. Mas a decisão final foi amplamente criticada por ativistas da saúde e movimentos populares em todo o mundo, já que a OMC rejeitou a isenção total do TRIPS.
Em 2020, diante da disseminação do novo coronavírus, África do Sul e Índia protocolaram a proposta de isenção do Acordo, que obteve amplo apoio dos países em desenvolvimento e de baixa renda – com exceção do Brasil. A nova decisão foi saudada pelo Secretariado da OMC e por representantes de países ricos como um resultado sem precedentes, mas ativistas condenam que, na prática, a decisão não atende as necessidades mínimas da maior fatia do mundo. “Houve um esvaziamento da proposta pelos países mais ricos. O texto perdeu totalmente sua força, não trouxe nada novo”, explica Felipe Carvalho, Coordenador Regional da Campanha de Acesso do Médicos Sem Fronteiras ao Outra Saúde.
A conclusão do órgão concedeu uma exceção temporária à restrição das quantidades de vacinas que podem ser exportadas sob licença compulsória; diagnósticos e tratamentos não estão incluídos e devem obedecer ao limite de exportação durante o tempo de licença compulsória – decretada durante emergências sanitárias, como é o caso da pandemia. Além disso, a concessão vale apenas para responder à covid-19 e não tem validade diante de outras crises de saúde. O acordo final não inclui o compartilhamento de segredos comerciais e know-how de fabricação, o que prejudicará a produção de vacinas com tecnologia avançada por países de baixa renda – como é o caso dos imunizantes de RNA.
Carvalho conta que o problema é abordado com frequência em reuniões escpecais da OMS e da ONU. “Existe um consenso entre especialistas e órgãos multilaterais de que as patentes causam constantes crises de acesso e inovação na saúde”. Em maio, o The Guardian divulgou que a Pfizer lucrou 25,7 bilhões de dólares só no início de 2022 – mais da metade do valor está relacionado à venda de vacinas contra a covid-19. Tim Bierley, ativista do Global Justice Now, denunciou ao jornal britânico que apesar do apelo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outras organizações, a farmacêutica seguia se recusando a compartilhar a tecnologia de produção do imunizante. O diretor da OMS, Tedros Adhanon, afirmou em 2021 que a pandemia estava sendo prolongada por uma “escandalosa desigualdade” diante do acúmulo de doses de imunizantes por países ricos enquanto países pobres não conseguiam avançar em sua meta de vacinação em massa.
“Desde a criação do acordo TRIPs nós temos um cenário de constantes crises de acesso a medicamentos essenciais”, conta Felipe. Ele relembra o caso emblemático da epidemia de HIV/AIDS, na década de 1990. “Em 1996 surgiu a primeira terapia para a doença. As pessoas pararam de morrer e passaram a conviver com o vírus. Mas essa terapia não chegou nos países onde o cenário era mais grave”, explica. O ano de 1996 foi também quando o acordo TRIPS entrou em vigor, após sua criação em 1994 e preparação em 1995. “A partir daí se criou uma coalizão na sociedade civil, da qual fazemos parte, chamada Movimento de Luta pelo Acesso a Medicamentos. A pergunta era: por que os preços eram tão altos e o tratamento se tornava inacessível para milhões de pessoas? Nos aprofundamos no sistema de patentes e entendemos que o monopólio era a causa”, relembra.
Apesar do TRIPS possuir cláusulas que permitem flexibilizações, elas são de difícil utilização devido a dois fatores principais: sua não-incorporação completa em leis de países-membros e a pressão que as farmacêuticas exercem sobre as decisões da OMC. Na década de 1990, diante da grave situação vivida na África do Sul – país com maior número de mortes pela AIDS na época – o governo então liderado por Nelson Mandela aprovou uma das medidas previstas no TRIPS para importar genéricos. Na ocasião, Mandela sofreu o processo de 39 farmacêuticas que se opuseram à decisão tomada para conter a crise de saúde pública. Apesar da derrota das corporações na justiça, “esse é um exemplo de como essas empresas e seus países-sede tentam barrar as normas legítimas existentes no TRIPS”, exemplifica Carvalho.
A OMC é uma instituição formada por 164 membros e opera com base na tomada de decisões por consenso. “A OMC falhou em fornecer uma isenção. O acordo coloca os lucros à frente das vidas e mostra que o atual regime de propriedade intelectual falha em proteger a saúde e promover a transferência de tecnologia. Essa não-renúncia estabelece um mau precedente para futuras pandemias e continuará a colocar vidas em risco” declarou Lauren Paremoer, médica e integrante do Peoples’ Health Movement na África do Sul.
A Health Action International, referência no trabalho para expandir o acesso a medicamentos essenciais, argumentou em nota que a decisão da OMC impõe obstáculos ao licenciamento compulsório, uma das poucas flexibilidades existentes no TRIPS, em troca de uma abertura tímida para a facilitação da exportação de vacinas. Outras entidades representantes da sociedade civil já denunciaram a atuação dos países ricos e vêm aumentando a pressão sobre os governos. O objetivo, segundo seus porta-vozes, é que sejam tomadas medidas concretas para desafiar as regras de monopólio farmacêutico da OMC e garantir mais acesso a medicamentos e tecnologias.