Como um joalheiro que esculpe delicadamente uma pedra preciosa, o escritor Fernando Morais cuida de seu texto enquanto olha atentamente para a tela do computador. A fumaça do charuto cubano invade o escritório e, em meio à névoa quase branca, ele relê, em silêncio, as frases que escrevera minutos antes. O jornalista então se vira, dá as costas para o texto na tela – peculiarmente instalada na posição vertical – e, com um largo sorriso, anuncia que já tem mais pedaço de sua nova joia: “Terminei mais um capítulo”. Fernando pega um pequeno copo de café, talvez o quarto do dia, reacende o charuto, e começa a transformar a sala de 40 m² em território cubano-americano. “De madrugada, os helicópteros do FBI começaram a sobrevoar os prédios em Miami. Os cubanos não sabiam de nada, mas o FBI já estava atrás deles havia muito tempo. Os policiais entraram nos apartamentos e prenderam os dez, recolheram tudo. Uma operação cinematográfica”.
Yenny Muñoa/Opera Mundi
Grupo de teatro cubano encena peça sobre a vida dos cinco; no fundo do palco, Fernando González com a esposa
A prisão reconstituída pelo jornalista foi, de fato, cinematográfica, e a vida dos dez presos se encaixaria perfeitamente no roteiro de um romance policial. O enredo e seus personagens são, porém, reais: em 12 de setembro de 1998, dez cubanos foram presos em Miami, na Flórida, acusados de fazer espionagem para o governo de Fidel Castro. Para os Estados Unidos, são um grupo de terroristas. Para Cuba, bravos heróis. Para Fernando Morais, eles são Os últimos Soldados da Guerra Fria (Companhia das Letras, 408 páginas, R$ 42,00). E esta é a história de seu último livro-reportagem, lançado nesta sexta-feira (19/08) com tiragem de 30 mil exemplares. A noite de autógrafos em São Paulo será na Livraria Saraiva do Shopping Pátio Higienópolis, terça-feira (23/08), às 18h30.
Os dez presos pelo FBI (Departamento de Investigação Federal dos EUA) naquele 12 de setembro eram parte da rede Vespa – um grupo de 12 homens e duas mulheres infiltrado em Miami, a capital dos exilados cubanos nos EUA, no início da década de 1990. Eles tinham um único objetivo: aproximar-se de grupos de oposição ao governo de Cuba e obter informações para prevenir futuros ataques terroristas na ilha.
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Com o desmantelamento de seu maior parceiro econômico, a União Soviética, Cuba passava pelo período especial, com uma queda significativa do PIB (Produto Interno Bruto). A solução para sair da crise, entre outras medidas, foi abrir o país para o turismo estrangeiro, setor que era até então inexplorado. À medida que crescia o número de hóspedes nos recém-construídos hotéis, também surgia uma nova missão entre os grupos anticastristas: a de boicotar o turismo. Em cinco anos, foram contabilizados 127 ataques terroristas, como o sequestro de aviões e a explosão de bombas em hotéis e em casas noturnas.
Algum tempo depois do início das atividades em Miami, a rede Vespa foi descoberta. Poucas horas após a prisão do grupo, em 1998, a imprensa da Flórida já noticiava, como se anuncia a vitória em uma final de campeonato, a “queda da rede dos espiões mantida por Cuba”. E não é preciso ser um exímio especialista para prever que esses agentes se tornariam um símbolo da histórica disputa entre EUA e Cuba – mais de uma década após o fim da União Soviética, a condenação foi um marco da guerra de inteligência que durante quatro décadas a guerra fria sustentou.
Yenny Muñoa/Opera Mundi
Ramón Labañino com a filha no colo; em Cuba, os cinco são considerados heróis nacionais
Dos dez presos pelo FBI, cinco fizeram um acordo com a justiça norte-americana, declarando-se culpados. Eles relataram como o grupo operava e conseguiram ser libertados. Os últimos Soldados da Guerra Fria, décimo livro de Fernando Morais, conta a história dos cinco agentes que ficaram presos, foram condenados e cumprem suas penas em prisões de segurança máxima nos EUA. São eles Antonio Guerrero, Fernando González, Gerardo Hernández, Ramón Labañino e René González.
Em 2001, depois de sete meses de julgamento, a justiça norte-americana considerou os cinco culpados por crimes envolvendo espionagem. Sob o principal acusado, Gerardo Hernández, pesam duas condenações de prisão perpétua. Ele foi considerado culpado também por ter planejado a queda de um avião em 1996, da organização anticastrista Hermanos al Rescate, na qual morreram quatro pessoas. A defesa do cubano alega, no entanto, que ele não teve relação com a queda do avião e afirma que o relatório sobre o acidente utilizado pela justiça foi manipulado.
Encontro com os cubanos
Foi também em 18 de setembro de 1998 quando Fernando Morais, em um táxi no trânsito de São Paulo, se interessou pela primeira vez pela história. Ele viajou a Cuba para fazer uma pesquisa, mas encontrou as portas fechadas. O assunto era segredo de Estado. No início de 2008, o governo de Cuba aceitou fornecer o material disponível. Nos EUA, o acesso às informações foi mais difícil, porque os agentes do FBI são proibidos de dar declarações públicas. Graças a uma lei que regula a liberação de documentos secretos, e após pesquisas nos arquivos da Justiça Federal da Flórida, Fernando teve acesso a cerca de 30 mil documentos enviados pelos agentes a Cuba e que haviam sido apreendidos pelo FBI.
Entrevista feita pela Companhia das Letras com Fernando Morais:
A cada semana de trabalho, um nova parte da história era cuidadosamente escrita e, em algumas vezes, narrada. “Na noite em que eles foram presos, o René tinha brincado com as filhas e a Olga, esposa dele, tirou uma foto dele segurado a Irmita, a caçula, que ainda era bebê, deitado”, contou. O jornalista faz uma breve pausa, passando a mão pela barba grisalha, e continua: “Eu sou barroco para contar as histórias. Preciso dos detalhes, de cada galho, de cada ramificação. Você precisa ter paciência”, avisa, como se não soubesse que é justamente sua caprichosa riqueza de detalhes que coloca seu interlocutor atrás de uma cortina imaginária, por meio da qual é possível observar os agentes cubanos por alguns instantes.
Fernando e Cuba
A relação do autor com o tema é mais antiga. Fernando foi primeiro jornalista brasileiro a ir a Cuba, em 1973, e a entrevistar Fidel Castro, em 1974, em uma época em que militares comandavam uma ditadura de direita no Brasil e os dois países, por razões ideológicas, haviam rompido as relações diplomáticas. Fruto da viagem, escreveu A Ilha, lançado em 1976, seu primeiro livro, que se tornou uma referência de como é o pequeno país caribenho que havia passado por uma revolução e implantado o socialismo.
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Em Os Últimos Soldados da Guerra Fria, Fernando não construiu um conjunto de arquivos de um processo judicial ou um dossiê da inteligência cubana. Trata-se de um relato repleto de detalhes da vida dos cinco cubanos em Miami e das organizações anticastristas, feito por um apaixonado pelo tema que, depois de 40 entrevistas e 18 viagens, foi capaz de transformar não apenas seu escritório, mas 400 páginas em território cubano-americano.
*Daniella Cambaúva é jornalista e colaborou com Fernando Morais na pesquisa para Os Últimos Soldados da Guerra Fria.
Serviço:
Os Últimos Soldados da Guerra Fria
Número de páginas: 408
Edição: Companhia das Letras
Preço: R$ 42,00
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