Dezesseis anos após a adesão do Peru ao Convênio 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), o congresso do país andino aprovou na noite desta terça-feira (23/08), por unanimidade, a Lei de Consulta Prévia aos Povos Indígenas. A partir de agora, o Estado se obriga a consultar essas comunidades para toda norma, projeto ou empreendimento que possam afetá-los diretamente – o que, na essência, é o estrito cumprimento da determinação do convênio.
A lei era uma das mais antigas reivindicações das organizações nativas amazônicas. Em abril de 2009, elas se uniram para pedir ao governo que parasse de aprovar decretos de emergência que os prejudicavam, especialmente em relação à ocupação e exploração dos recursos naturais em seus territórios.
O Tribunal Constitucional e a Defensoria do Povo já haviam determinado, entre 2008 e 2009, já haviam destacado a importância da aplicação do Convênio 169 no Peru, em sentenças e recomendações a favor de população indígena.
Confronto
Entretanto, o governo de Alan García não atendeu às demandas na época, nem mesmo quando os nativos organizaram uma grande mobilização na região amazônica, com direito a bloqueios em estradas como protesto pelos decretos emergenciais. A situação terminou tragicamente com um enfrentamento em Bagua (no departamento de Amazonas, ao norte) quando, em 5 de junho de 2009, morreram 24 policiais e dez nativos.
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Em razão da crise política gerada pelos confrontos, Beatriz Merino, a Ombudsman da época (cargo público único no Peru, também conhecido como Defensor do Povo, que acumula funções de procurador-geral, ouvidor e ministro), apresentou, em julho de 2010, um projeto para criar a lei de consulta prévia. A proposta somou-se a outras três iniciativas de lei que já tramitavam no parlamento entre 2006 e 2007.
Porém, a administração García manteve uma posição de confronto em relação aos povos nativos, e os caricaturou como “violentos”, que sofriam “manipulações de interesses estrangeiros” e que se opunham ao desenvolvimento e ao crescimento econômico do país.
Em maio de 2010, o Congresso chegou a aprovar uma versão da lei. Entretanto, o Executivo posicionou-se contra ela, argumentando que havia um dispositivo que dava “poder de veto” aos indígenas em caso de projetos de investimento. Por fim, a lei acabou não entrando em vigor.
Durante a campanha eleitoral de 2011, o então candidato Ollanta Humala manifestou apoio à demanda indígena em diversas ocasiões. Até mesmo alguns meios de comunicação que se posicionaram contra sua aprovação em 2010 mudaram de opinião. O jornal El Comercio, de alinhamento conservador, por exemplo, chegou a criticar o Congresso na semana passada por ter atrasado a data de votação do projeto em plenário.
Mudança
Logo após a aprovação da lei, o presidente Humala, afirmou, em sua conta no Twitter, que este era “mais um passo em busca da inclusão social. Montaremos um Peru para todos”.
A chefe do programa de povos indígenas da Defensoria do Povo, Alicia Abanto, em entrevista ao Opera Mundi, afirmou que, a partir de agora, os ministérios, governos regionais e prefeituras deverão “regulamentar ou fixar procedimentos para implementar a lei e avançar nos processos de diálogo”.
A lei de consulta prévia, que entrará em vigor no dia seguinte de sua publicação no diário oficial, estabelece que “é direito dos povos indígenas serem consultados previamente sobre as medidas legislativas ou administrativas que afetem diretamente seus direitos coletivos, sua existência física, identidade cultural, qualidade de vida ou desenvolvimento”.
Entrevistado por Opera Mundi, o adjunto da Defensoria do Povo para Serviços Públicos, Meio Ambiente e Povos Indígenas, Ivan Lanegra, comentou que a lei pretende derrotar a desigualdade e a discriminação. Porém, segundo ele, ainda há muito a fazer dentro da estrutura do Estado para levar esses processos adiante. “Assim como o vice-ministério de Interculturalidade (recém-criado no ano passado) precisará ser fortalecido, as organizações amazônicas também terão de se organizar, tornando-se mais confiáveis e conhecidas”, acrescentou Lanegra.
Para Alberto Pizango, líder de Aidesep (Organização Nacional dos Povos Indígenas Amazônicos do Peru), a principal instituição de organizações de comunidades amazônicas, qualificou a norma como uma mostra do governo “para dar sequência às profundas mudanças necessárias ao país. Uma autêntica forma de fazer as coisas com respeito, impulsionando o desenvolvimento harmônico do país”. Pizango foi representante dos indígenas no diálogo com o governo em 2009, quando as negociações acabaram rompidas, e acabou acusado de incentivar a divergência.
O pesquisador da Escola de Alta Direção da Universidade de Piura Shuar Velásquez qualificou a lei como “uma prova institucional de que estamos passando a aceitar nossa realidade: de que somos pluriétnicos, diversos, múltiplos, e nos encaminhamos para um processo de mudança. De que deixaremos de ser um estado para poucos e no qual as minorias participam da tomada das decisões”.
Velásquez, filósofo e membro da etnia awajún-wampis, do departamento de Amazonas, foi um dos ativistas indígenas mais destacados após os enfrentamentos de Bagua há dois anos.
O pesquisador ressaltou, no entanto, que, em razão do racismo e da discriminação existentes no país, o governo deve desenvolver um programa de formação acadêmica para os melhores estudantes das mais de 50 etnias amazônicas, já que não estão preparados para negociar com empresários ou políticos influentes.
Definição
A lei de consulta prévia define os povos indígenas como os descendentes diretos dos habitantes do Peru antes da conquista espanhola; e que, além disso, possuem estilos de vida e vínculos espirituais ou históricos com o território que tradicionalmente ocupam e usufruem.
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