A cantora argentina Mercedes Sosa morreu hoje (4), aos 74 anos, em um hospital em Buenos Aires. Com um sobrepeso que lhe causou diversas enfermidades, estava há 15 dias em uma clínica no bairro de Palermo, com um severo transtorno hepático que se complicou devido a problemas cardiorrespiratórios e desacreditou os médicos. A morte de Sosa é uma perda coletiva que envolve os compatriotas que cresceram e acompanharam os momentos mais doces e amargos da carreira da artística, com canções de denúncia e de esperança.
Assim, nos últimos dias, os “companheiros artistas”, como ela chamava os amigos, foram passando por seu quarto para desperdir-se enquanto ainda era possível levar uma palavra de conforto, um gesto amoroso ou ao menos um sorriso à cantora mais importante da história da Argentina.
Marcelo Sayao/EFE (07/10/08)
Cantora recebeu no Brasil medalha de Honra ao Mérito Cultural: Homenagem a Machado de Assis, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2008
Quando o quadro se tornou irreversível, definitivo, a cantora ficou em coma induzido de modo que pudesse morrer sem dores. Um dia antes da morte, o sacerdote Luis Farinello havia lhe dado a extrema unção. Ao sair do hospital, o religioso disse que ela estava dormindo, mas quando disse a ela quem era e o que estava fazendo, deu-lhe como um empurrão, como se soubesse o que estava fazendo. No dia seguinte, Mercedes Sosa morreria.
As rádios, as redes de televisão e a internet anunciaram sua morte com canções e vídeos de seus shows. Lugar-comum tem sido comentar a perda usando como fundo musical “Gracias a la Vida”, música de Violeta Parra que Sosa converteu em oração.
Assista ao vídeo da música “Gracias a la Vida”:
Ícone da música folclórica
Mercedes Sosa ou La Negra, como é conhecida pelo povo argentino, ou La Gorda, como diziam com carinho os amigos artistas, nasceu em Tucumán, no noroeste da Argentina, em 9 de julho de 1935 em uma família onde o sangue aborígene prevaleceu sobre a ascendência francesa.
Aos 15 anos, ganhou um concurso de rádio em sua província e recebeu reconhecimento da emissora com um contrato de dois meses. Desde então, desenvolveu-se um lenta, mas perseverante, carreira que teve como marco o ano de 1965, quando se apresentou no Festival de Cosquín, o mais importante cenário folclórico do país, quando foi capaz de superar o machismo que reinava na música indígena.
Em 1967, já casada e mãe, realizou sua primeira turnê pelos Estados Unidos e Europa. No início dos anos 70 gravou álbuns conceituais como “Cantata sudamericana” e “Mujeres argentinas” que lhe confirmaram como uma grande artista, extremamente profissional, com uma voz sempre entonada. As obras deste período também evidenciaram suas ideias: rebelde com os tradicionalismos e uma relação inorgânica e consistente de 30 anos com o Partido Comunista Argentino, o que lhe custaria a perseguição da extrema direita do governo Juan Perón e, em seguida, a censura de canções nos meios de comunicação durante a última ditadura militar.
Durante os primeiros anos do governo de facto permaneceu no país fazendo poucas apresentações, mas, em 1979, durante um concerto na cidade de La Plata, foi presa assim como pessoas do seu público. Ali começou o exílio que a levou, em primeiro lugar, para Paris e, depois, para Madri.
Três anos depois, voltou à Argentina quando os militares perderam a guerra das Malvinas e deixaram o poder. Voltou viúva de seu segundo marido (do primeiro se separou amargamente) e com um timbre de voz mais grave – porque havia perdido todas as notas de soprano da primeira etapa da carreira.
Perdeu em alguns aspectos, mas continuou sendo a imortal Mercedes Sosa, que, aos 47 anos, realizou uma sequência de apresentações no Teatro Opera, em Buenos Aires, com entradas esgotadas e que foram reunidas em um disco histórico chamado “En vivo en Argentina”. Com ligeiras variações e um pouco mais envelhecida, o que nem sempre é ruim, essa foi a voz de todos os trabalhos posteriores.
Desde então, e até os anos 2000, quando começaram os problemas de saúde, foi uma figura de relevância internacional, que se apresentou nos melhores locais do mundo: no Mogador de Paris, no Lincoln Center, no Carnegie Hall, no Teatro Colón, só para mencionar alguns.
Assim também gravou canções com os melhores músicos de seu tempo, especialmente em línguas latinas, com as quais sentia maior afinidade para cantar e saber o que estava cantando. Essa característica de interpretação consciente sempre foi parte de Sosa. Apesar de não ser compositora, ansiava por captar a essência das canções que entonava, ao ponto que alguns covers se voltaram às verdadeiras versões clássicas destes temas. Assim foi com “La Maza” de Silvio Rodríguez, “Gracias a la Vida” de Violeta Parra, “Sólo le pido a Dios” de León Gieco e, possivelmente, com “María, María” de Milton Nascimento.
Veja vídeo da gravação ao vivo de “Sólo le pido a Dios”:
Luto
Juan Anselmo Leguizamón, diretor estadual de Cultura de Santiago del Estero, um dos berços da música folclórica argentina, disse que La Negra Sosa “colocou a mulher no centro do folclore, um gênero tradicionalmente ultraconservador e machista”. E continuou: “Com ela, abriu-se para a mulher um lugar de destaque, que não é marginal nem à sombra do homem e que lhe permite escapar de outro estereótipo tradicional que foi reservar ou condenar a mulher à dança”. “Contudo, se reconcilia com a tradição de encarnar aquela mulher grave, potente, sólida, quase uma rocha, severa que se evidencia na figura da Argentina, sempre um passo a frente do homem que é boêmio, infatil e sonhador”.
No mesmo sentido, Diana Sorkin, designer gráfica de 40 anos, que mora no bairro de Palermo, o mais luxuoso de Buenos Aires, disse que para ela Mercedes sempre representou a imagem de “Pachamama” (a mãe terra).
O músico, escritor e performista Eitan Abelson interpreta de outro modo o êxito de Sosa no folclore argentino. Disse que “é a única mulher que justificou um deslocamento da figura do macho no folclore. E isso vai mais além de ser tradicionalista ou moderna, machista ou mente aberta; bateria e baixo elétrico soam mal na música folclórica. A voz feminina também. Certamente, ela triunfou porque não tem uma voz feminina”.
Miguel Mora, diretor da gravadora Universal, disse que, junto a Astor Piazzola [compositor argentino] e Atahualpa Yupanqui [cantor, compositor e escritor do país], Mercedes Sosa “se converteu em um fenômeno internacional sem perder a identidade por ‘globalizar-se’, porque onde ela seja ouvida, em qualquer hemisfério, imediatamente se é transportado para o mais profundo e autêntico som argentino”.
Nesse sentido, nem sua internacionalização nem sua indagação a outros gêneros musiciais foram problemas. Começou cantando folclore argentino, mas se deixou conquistar pela música popular brasileira, animou-se com o tango e teve um romance extraordinário com a onda roqueira argentina dos anos 1980 e 1990. E ninguém achou ruim.
Algo inegável é o contexto histórico em que esta grande artista argentina se despede neste fim de semana do show de sua vida. O escritor Martín Rodríguez, nascido en 1978, disse que a morte de Mercedes fecha o círculo que a morte do ex-presidente argentino Raúl Alfonsín (1983-1989) abriu em março deste ano: “sua voz absorveu o clima da recuperação democrática. E se Alfonsín pagou com o corpo às desilusões, na voz de Mercedes esses sonhos permaneceram intactos”. Essa Argentina de 1983, da esperança democrática, morre uma vez mais com a morte de Mercedes, como havia morrido muito com o desaparecimento do ex-presidente.
Neste ano, a Sony lançou um disco duplo chamado “Cantora I e II”, com duetos com a maioria dos artistas com quem Mercedes Sosa se relacionou durante a vida, como Joan Manuel Serrat e Caetano Veloso. O disco resultou em seu último grande bis e foi indicado a três prêmios Grammy Latino. Sua voz, mais discreta e apoiada pela tecnologia, e o imenso amor que dispensaram seus companheiros durante as gravações poduziram uma obra formidável. Tão boa que quando ela terminou, cedeu às forças que empurraram seu corpo para a morte.
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