Victor Farinelli/Opera Mundi
Mesmo após ter o carro incendiado, aposentada seguiu apoiando a causa dos estudantes chilenos
Se o dia 14 de julho havia sido traumático para a chilena
Mary Hitchman, por encontrar seu carro em chamas por obra da fúria de
manifestantes durante uma passeata estudantil, esta terça-feira (13/09), quando
os estudantes de Valparaíso lhe entregam outro carro novo em folha, será ainda
mais memorável, desta vez de forma positiva.
Mary teve
seu carro completamente destruído por alguns manifestantes que participaram do
chamado “Portenhaço” (marcha organizada exclusivamente pelos movimentos sociais
de Valparaíso). O grupo de Estudantes da região de Valparaíso, ao saber do
acontecido, não tardou em reunir os esforços necessários em ressarci-la. “Vimos
no incidente uma oportunidade de demonstrar que nossa mobilização tem muito
mais de construtiva do que de destrutiva”, disse Lucas Solla, diretor da
federação de estudantes da USM (Universidad Santa María), um dos principais
envolvidos no projeto.
Os eventos
organizados pelo movimento estudantil portenho (generativo dos naturais de
Valparaíso) e as doações individuais arrecadaram 3,9 milhões de pesos (cerca de
R$ 14 mil), suficientes para comprar um Kia prateado, modelo 2010.
Valor sentimental
Mary
Hitchman havia saído naquela tarde de quinta-feira para fazer compras no centro
da cidade. Deixou o carro, um Subaru branco modelo 1998, na esquina da Avenida
Brasil com a Rua San Ignacio. Retornou uma hora depois, e encontrou uma pequena
multidão ao redor de uma enorme fogueira.
A dor por
reconhecer seu veículo em meio às chamas não tinham que ver com a perda de um
patrimônio material. O carro a ajudava a seguir ligada à memória de seu marido,
José Raúl Sanhueza, morto em 2006. “Ele adorava aquele carro. Ainda quando
começou a ter alguns problemas de visão, insistia em lavá-lo e encerá-lo
pessoalmente, e o esfregava quase de memória”, recorda.
Curiosamente,
enquanto deixava o local, Mary declarou aos jornalistas presentes seu apoio ao
movimento estudantil, apesar da perda do carro. Ela não falava sem conhecimento
do tema: “eu e meu marido fizemos grandes sacrifícios para poder pagar a
universidade da minha filha, María José, e nem assim escapamos das dívidas”.
Hoje, a estilista aposentada aluga os quartos de sua casa para estudantes, o
que a mantém em constante contato com a realidade dos jovens chilenos.
Foi
justamente uma dessas estudantes que viveu alguns anos na casa da Mary quem
iniciou o contato entre ela e o grupo de Lucas Solla. “Foi numa aula de tango,
dias depois do incidente, ela veio e me disse ´Tia Mary, não se preocupe que já
estamos organizando alguns eventos para poder ajudá-la”.
A ideia
inicial era reunir todos os recursos, com rifas e doações, para bancar a
entrada para um carro novo, e não financiar a compra totalmente, mas logo essas
expectativas foram superadas. “Em agosto, realizamos uma festa onde esperávamos
conseguir 1 milhão de pesos (cerca de 3,5 mil), e a conta final foi de quase 2
milhões (cerca de R$ 7 mil)”, contou Solla.
A festa,
realizada na discoteca El Huevo, reuniu mais de duas mil pessoas, e contou com
a própria Mary Hitchman, dançado tango e sendo consagrada como a “Tia Mary”,
uma espécie de madrinha do movimento estudantil em Valparaíso. “Começamos
ajudando a uma pessoa que nem conhecíamos e terminamos ganhando uma tia que nos
apoia hoje e em qualquer situação que tenhamos na vida”, concluiu Solla.
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Decepção com Piñera
“Quando eu
era jovem, quis abrir um negócio próprio e pedi um empréstimo ao banco, que foi
negado porque não tinha como pagar, e hoje as famílias conseguem empréstimos
quiçá nunca conseguirão terminar de pagar”. Esse é um dos problemas apontados por
Tia Mary como causadores da atual crise educacional chilena. “Eu estudei numa
escola pública gratuita quando o país tinha poucos recursos. Hoje temos uma
riqueza que deveria nos permitir mais esforços do governo nesse âmbito”,
analisa.
A estilista
não é uma opositora fervorosa do governo de Sebastián Piñera, e nem poderia
ser, já que ela confessa, com algum arrependimento, que votou nele nas últimas
eleições. “Não sou de esquerda nem de direita, apostei nele porque a coalisão
que estava antes (Concertación, de centro-esquerda) já não era capaz de
realizar as mudanças que o país precisava. Infelizmente, ele tampouco as
trouxe”.
Mas ela diz
que não apostará mais na atual classe política, e que o vivido nesses 55 dias
entre a perda do carro antigo e a entrega do novo serviram para que ela
descobrisse uma juventude que ela vê capaz de superar os desafios deixados
pelas gerações anteriores. “Os adultos chilenos são responsáveis por legar a
esses jovens um panorama muito difícil, por isso devemos apoiá-los quando eles
estão dispostos a mudar o país para melhor”, é a lição da Tia Mary.
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