Um processo de extradição em trâmite no STF (Supremo Tribunal Federal) pode ser um precedente fundamental para a abertura de processos contra torturadores no Brasil. O caso é o do major uruguaio Manuel Piacentini, acusado por diversos crimes durante a chamada Operação Condor, ação coordenada de cooperação entre regimes militares do Cone Sul para a perseguição de opositores.
De acordo com o procurador Marlon Alberto Weichert, se os ministros entenderem que Piacentini deve ser deportado para a Argentina, onde responde a processo pelo seqüestro de um bebê, casos de outros desaparecidos políticos poderão ser reabertos. Confira a terceira parte da entrevista com o procurador.
Como o caso Piacentini pode influenciar futuros processos no Brasil?
O Supremo está fazendo uma discussão sobre a figura do crime de desaparecimento forçado, que está presente em tratados internacionais dos quais o Brasil não concluiu a ratificação. O caso trata do seqüestro de um recém-nascido na Argentina na década de 1970, que foi entregue à adoção e só ficou sabendo de sua identidade recentemente.
O procurador-geral da República concluiu, num parecer que está sendo acolhido até o momento, por 5 votos a 2, no sentido de que equivale ao crime de seqüestro qualificado.
Como o seqüestro é um crime permanente, enquanto não forem encontrados os restos mortais da vítima, para poder definir a data em que houve o homicídio e cessou o rapto, não há como se falar em prescrição nem em anistia. É um precedente de extrema importância, porque, se consolidada a posição do PGR, significa de que os crimes continuados enquanto não tiverem fim permanecem em aberto, uma tese adotada pelos países vizinhos e pela CIDH.
A Lei de Anistia foi editada em 1979. Por que foi preciso que se passassem quase 30 anos para o debate sobre os crimes dos anos de chumbo retornar?
Acho que essa pergunta só pode ser feita àqueles que se omitiram por tanto tempo. Eu só posso ter um palpite: havia uma interdição sobre o assunto e as pessoas consideravam que as instituições não estavam maduras pra enfrentar esse assunto.
Tecnicamente houve omissão, do aparato policial, do Ministério Público, e ainda existe a omissão do Poder Judiciário. O sistema de Justiça brasileiro continua omisso e que houve falta de vontade política não há dúvida, tanto que hoje ainda há uma resistência política muito grande sobre esse tema. O Congresso Nacional também permanece inerte e sequer participa da discussão, como se fosse um problema exclusivo do Poder Judiciário.
Hoje, quais são os principais obstáculos às investigações e processos sobre esse período?
Do ponto de vista técnico, é a dificuldade de superar a visão existente de um isolamento entre o direito interno e o direito internacional. Isso é algo que hoje em dia não é mais concebível, é de uma ambiguidade inadmissível. O Estado Brasileiro pode e será condenado em uma instância internacional por não aplicar essas obrigações. E como o país, de forma constitucional, reconhece a jurisdição da CIDH, tem que se submeter à sua jurisprudência.
Do ponto de vista prático, a maior dificuldade é a apuração dos fatos. O tempo dificulta sobremaneira as investigações e existem casos em que com certeza será impossível a persecução penal por falta de provas. Uma coisa que o país deveria fazer urgentemente é criar uma comissão de verdade, para ter uma versão definitiva, oficial e mais imparcial possível sobre esses episódios.
Hoje vivemos em uma dicotomia entre a versão dos militares, de negação absoluta de praticamente tudo, e as versões das vítimas. O Estado precisa de uma comissão imparcial para produzir, como recomendam as Nações Unidas e as Cortes Internacionais, e como fizeram nossos vizinhos, um relatório isento sobre esses acontecimentos. Especialmente num momento que o governo diz que infelizmente não há documentos, ou que a maioria deles foi destruída. É preciso que se faça essa reconstrução, seja para fins históricos, ou especialmente para fins históricos, mas que também teria sua utilidade para fins judiciais.
O que achou da polêmica sobre o termo “ditabranda”, criado pela Folha de S. Paulo em referência ao regime militar brasileiro?
Eu acho que aqueles que pretendem uma redução matemática da violação à dignidade da pessoa humana têm, primeiro, uma dificuldade muito grande de compreender o que são os direitos humanos e, segundo, uma deficiência muito grande na área jurídica.
O conceito de crime contra a humanidade não envolve necessariamente a prática de um genocídio. Envolve a idéia de que houve um seguimento social que foi perseguido em função do seu posicionamento político, da sua identidade étnica, racial ou religiosa. Basta um único homicídio para estar caracterizado o crime de lesa-humanidade.
Tentar imaginar que a tortura é justificável porque morreram só quatro centenas e não morreram quatro milhares é fazer pouco caso da dignidade da pessoa humana. De qualquer modo, para os que gostam de reduções matemáticas, eu diria que a violência foi tão ampla no Brasil que nós temos no mínimo 30 mil pessoas que foram alvo de tortura.
Se essa pessoa que faz contas acha isso irrelevante, precisa imaginar que é mais ou menos um estádio do Pacaembu lotado de pessoas torturadas.
Leia mais:
Parte 1 – Impunidade dos crimes da ditadura gera violência policial no Brasil
Parte 2 – Atraso em relação a vizinhos ainda é grande
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