As missões de paz da ONU (Organização das Nações Unidas) não são isentas de problemas e violações por parte de seus oficiais em relação à população afetada. Até mesmo os capacetes azuis precisam de órgãos de corregedoria que sofrem, por sua vê, os mesmos problemas de interferência política como qualquer outro órgão policial. Entretanto, são raras as oportunidades em que esses casos são levados a público, como fez a sueca Inga-Britt Ahlenius.
A dirigente construiu sua reputação como auditora-geral do governo sueco, depois de ocupar cargos no Ministério do Comércio e da Indústria e no Ministério das Finanças. Em 2003, foi auditora-geral no Kosovo pós-guerra e conselheira da Comissão Europeia para prevenção de fraudes.
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Em julho de 2005, assumiu como chefe do Oios (escritório de controle interno das Nações Unidas), órgão responsável por investigar desde fraudes até denúncias graves praticadas no seio das forças militares em missão de paz representando a entidade, onde permaneceu até 2010.
Ao deixar o cargo, publicou um polêmico relatório de 50 páginas em formato de auditoria, em que acusou severamente o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, por tentar evitar a transparência na organização. No começo do, publicou um livro criticando o secretário-geral, disponível apenas em sueco.
“Sua atuação foi de nula a negativa”, disse ela em entrevista à Agência Pública na qual contou as principais dificuldades para investigar e punir soldados de missão de paz como a do Haiti: “É raro que as descobertas que fazemos contra os soldados sejam levadas a cabo”.
Durante o período em que você esteve à frente do Oios, que tipo de abusos cometidos pelas tropas de forças de paz o escritório investigou?
Isso é uma questão de como são definidas as responsabilidades. Perseguimos muitos casos referentes a abusos contra menores. Quando falamos de prostituição, os casos quase sempre acabam recaindo sob a responsabilidade do chefe da missão. Em geral, tomamos conta dos casos mais graves.
Agência Pública
Inga-Britt Ahlenius com seu livro crítico à administração Ban Ki-Moon
Quais os principais problemas para investigar e punir os soldados acusados de abusos, às vezes até contra menores, ou casos de prostituição, por exemplo?
Há uma complicação: os acordos com os países que contribuem com as tropas. Eles têm a responsabilidade primordial de conduzir e concluir uma investigação. Quando era diretora da Oios, houve um outro caso no Haiti envolvendo soldados uruguaios [além da acusação de estupro contra um jovem local]. Nossa conclusão foi que a investigação não foi conduzida [por eles] de maneira apropriada.
O único caso bem-sucedido que eu me lembro foi em relação às autoridades do Sri Lanka, que agiram rapidamente. Tivemos uma boa cooperação. Nós fizemos uma primeira investigação e depois eles nos pediram auxílio para ficamos como assistentes na investigação deles. As autoridades do Sri Lanka agiram rapidamente: os soldados foram repatriados rapidamente e passaram por uma corte marcial. O Sri Lanka pediu a nossa ajuda, e nós colaboramos para a instrução do processo. Mas é o único caso que eu conheço em que as descobertas do relatório foram levadas a cabo.
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Geralmente não é assim?
Não. Se você finalmente consegue realizar a investigação, é raro que as descobertas sejam levadas a cabo. Muitas vezes enviamos pedidos de informação depois dos soldados serem repatriados e não obtemos resposta. Esse é o aspecto mais importante, o grande ponto fraco para um chefe de investigação do Oios. Não podemos conduzir uma investigação completa a menos que haja um reconhecimento formal por parte do país envolvido para transferir essa responsabilidade a nós. É uma enorme preocupação em relação à integridade das investigações.
Também há o problema de alta rotatividade. No Haiti, os soldados só ficam por seis meses e, muitas vezes, são repatriados antes que a investigação preliminar da ONU no local possa ser concluída. O contingente vai embora e chega outro. Portanto, se algum deles está sendo investigado, pode escapar facilmente. Fica muito mais difícil haver uma prestação de contas adequada.
Qual seria a solução?
O problema é que a ONU não tem nenhum poder legislativo formal para aplicar o resultado de tais relatórios. Isso fica a cargo do estado-membro da ONU. O procedimento mais efetivo seria a existência de um processo político que permitisse a aplicação da lei pela ONU.
Um alto militar brasileiro afirmou que, em 2004, dois soldados brasileiros foram repatriados por serem acusados de estupro, mas isso não foi noticiado em lugar nenhum. Você soube desse caso?
Alguns casos nunca chegaram ao meu conhecimento porque os soldados são simplesmente mandados para casa e se evita uma denúncia formal.
Porém, nosso procedimento de investigação é muito criterioso.O Oios não age com base em fofocas.Todas as denúncias têm que ser verificadas e substanciadas para serem consideradas sérias o bastante. É uma responsabilidade muito grande.
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No caso de abusos por parte de tropas de outras nacionalidades no Haiti, de quem é a responsabilidade?
O chefe da missão tem a responsabilidade geral sobre a missão, e o chefe militar tem a responsabilidade por todos os soldados. Contingentes diferentes têm culturas diferentes, então depende muito do chefe. Na mesma nacionalidade, encontram-se bons e maus contingentes. Mas tem que haver uma relação e contato muito forte entre o chefe da missão, o comandante militar e os chefes de contingente. Os chefes têm que informar os soldados sobre as regras da ONU.Por exemplo, que a prostituição é proibida pela norma das missões de paz. Se o comandante militar é brasileiro, ele é responsável por garantir que cada líder do seu país informe os soldados sobre as regras.
Os casos de prostituição e abuso são comuns nas missões de paz? Devemos esperar que elas ocorram?
Não diria isso. Porém, no caso de prostituição, temos de ser realistas. São diversos homens jovens chegando a um lugar isolado, no meio de uma população muito pobre. É uma situação muito arriscada. Portanto, há uma responsabilidade muito forte do chefes de missão e dos comandantes de cada contingente para evitar o acesso à prostituição.
Ao deixar o Oios, você fez um relatório de auditoria em que acusava a gestão de Ban Ki-Moon de ser contrária à transparência que ele dizia defender. Que eventos levaram você a essa percepção?
Não se trata de uma mera percepção. Dei muitas provas em meu relatório sobre o fato de que ele agia para minar a independência do Oios. Um exemplo foi a maneira como ele reagiu à indicação de Robert Appleton (ex-oficial norte-americano) como diretor de investigações. O secretário-geral não tem autoridade para designar ninguém para esse cargo.
Mas a equipe de Ban forneceu uma série de argumentos técnicos para ser contra a minha indicação. Disse que não havíamos considerado necessariamente as mulheres para as vagas. Appleton conduziu a força-tarefa que investigou o escândalo de “comida por petróleo” no Iraque de uma maneira belíssima, que levou inclusive à demissão de diversas pessoas e à condenação de um oficial nos EUA. Mas o secretário-geral levou essa indicação do Robert como uma possível influência na sua própria autoridade.
Era claramente uma situação em que ele não queria que agíssemos para monitorar o seu poder. E essa é uma maneira muito primitiva de exercer autoridade.
* Esta reportagem integra uma série especial sobre o Haiti preparada pela Agência Pública.
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