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Em 29 de agosto de 2011, um grupo de cerca de 150 tunisianos alojado no CSPA (Centro de Atendimento e Primeiros Socorros) de Lampedusa forçou a cerca que os separava do bairro de Imbriacola e se espalhou pelas ruas da ilha. A maior parte desses homens, todos jovens, se concentrou no cais de Favarolo, onde iniciou um protesto emocionado. Aos gritos de “Liberdade! Liberdade!” e “Roma!”, a cidade para a qual queriam viajar, eles chamaram a atenção do mundo. Pela primeira vez, não eram mais invisíveis.
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Na época, a Tunísia ainda celebrava a queda do ex-ditador Zine El Abidine Ben Ali, em 14 de janeiro. Porém, alguns dos motivos que levaram à revolta popular – fome e desemprego – persistiam no país no Norte da África. Com isso, centenas de milhares de tunisianos tentavam a sorte em rudimentares embarcações no Mar Mediterrâneo.
No entusiasmo da fuga em Lampedusa, um dos imigrantes tentou se distanciar do grupo, mas foi rapidamente alcançado pela polícia. E assim, até o pôr-do-sol, ao longo do novo porto de Lampedusa, era possível ver, em meio aos turistas que retornavam das excursões marítimas, diversos tunisianos escoltados por policiais. No cais de Favaloro, o protesto prosseguiu até tarde da noite, longe da vista dos turistas, que tiravam fotografias da nova “atração”. A polícia criou um cerco acessível somente aos membros de ONGs presentes à ilha. Após a promessa de uma rápida transferência para outros centros da Itália, no continente, os tunisianos retornaram ao CSPA.
Graziano Graziani/Opera Mundi
Embarcação afundada no cais de Lampedusa, ao lado de barco da Guarda de Finanças italiana
O que acendeu o rastilho da manifestação foi a notícia de que 30 jovens teriam sido embarcados em um voo para a Tunísia sem passar antes por Palermo, onde é feita a confirmação da expulsão pelas autoridades. A tensão, que já estava alta, aumentou e conduziu primeiro a uma revolta no interior do centro – com furiosos arremessos de pedras e garrafas – e depois à fuga em massa e à manifestação no cais.
Ainda que as autoridades não tenham confirmado o boato, o caso coincide com os procedimentos adotados por Roma. Entre 21 e 22 de agosto de 2010, centenas de imigrantes avistados em alto-mar foram impedidos de chegar à Lampedusa e ficaram à deriva. “Chegamos ao cais para prestar os primeiros-socorros e realizar atividades de monitoramento”, relata uma voluntária do CSPA ao Opera Mundi, “mas não havia sombra dos imigrantes. Foram trazidos para a terra apenas aqueles que precisavam de socorro urgente: duas mulheres grávidas e um cadeirante”.
O restante do grupo foi entregue diretamente à guarda costeira da Tunísia em alto-mar, sem se verificar a existência de eventuais candidatos ao asilo. Foi a primeira vez que o governo italiano abandonou a política de expulsões estabelecida em 2009, fato que lhe rendeu críticas unânimes de organizações de direitos humanos. Por esse motivo, em 22 de junho desse ano, a Itália precisou se apresentar diante do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para explicar a expulsão.
Isolamento
A manifestação dos tunisianos quebrou por um dia o surreal isolamento que caracteriza as duas comunidades da ilha: de um lado habitantes e turistas, que vivem a beleza desta faixa de terra em meio ao Mediterrâneo; do outro os imigrantes, a polícia e os operadores das ONGs, que enfrentam a difícil urgência de continuar o desembarque de norte-africanos rumo à Europa.
O CSPA e um presídio permanente do Ministério do Interior asseguram que os imigrantes não sejam vistos. Os estrangeiros são interceptados em alto-mar, escoltados até o porto militar ou resgatados quando as embarcações estão em mau estado e, de lá, chegam diretamente ao centro, onde a entrada é proibida para civis, a menos que sejam funcionários de associações humanitárias autorizadas pelo governo.
Graziano Graziani/Opera Mundi
Em contraste com a realidade dos imigrantes, o popular centro turístico de Lampedusa
Antes do CSPA, o procedimento era diferente: os nativos da ilha recebiam e ajudavam quem desembarcava em Lampedusa. Porém, com o aumento do número de imigrantes que tenta chegar à Itália, houve uma militarização da ajuda humanitária.
A escalada das tensões foi inevitável. Em agosto, enquanto os tunisianos protestavam, alguns jovens da ilha abordaram os repórteres. “Vocês precisam escrever que todos deveriam ser jogados de volta ao mar”, disse um deles. A paciência dos lampedusanos parece ter sido consideravelmente reduzida depois do desembarque de 6,5 mil imigrantes março passado. Eles acamparam onde puderam, porque o centro de acolhimento – que tem capacidade para 850 pessoas – não podia abrigar a todos. Basta dizer que os habitantes da ilha são pouco mais de cinco mil. O temor alimentado por muitos é de que, pouco a pouco, os habitantes deixem a ilha.
Relatos da ilha
Ainda que se tratasse de um caso extraordinário, o desembarque maciço de março mudou as cartas na mesa. “Tínhamos medo de sair de casa. Os pais não deixavam os filhos saírem sozinhos, e as crianças eram obrigadas a brincar em casa. Não que aqueles que venham sejam necessariamente más pessoas, mas com toda aquela gente ao redor não se sabe mais”, relata Angelina, moradora de Lampedusa, ao Opera Mundi.
Entre os mais assustados estão aqueles que trabalham no setor turístico – eles dizem que a metade dos turistas desapareceu. “Muitos se deixaram impressionar pelos telejornais achando que, se viessem para cá, estariam em contato direto com as pessoas que desembarcam, mas não é assim”, conta uma operadora turística. Provavelmente, alguns devem ser perguntar se é correto tomar sol a poucos metros de pessoas detidas à espera de um destino incerto.
Carlos Latuff
Em contraste com parte dos moradores da ilha, onde prevalece o medo, estão aqueles que a mantém aberta ao acolhimento. Ciro, um velho marinheiro de 83 anos, aposentado, ignora a tese de que a vida piorou. “É tudo como antes, não mudou grande coisa. Se chegarem outras pessoas, as ajudaremos, como sempre fizemos”, diz.
É este o espírito original dos lampedusanos, segundo Annalisa e Gianluca, dois jovens que abriram uma associação que luta pelos direitos dos imigrantes e há três anos realiza um festival cinematográfico dedicado à imigração. “Anos atrás, quando não haviam as associações, os primeiros socorros eram prestados pelos locais. Temos um forte laço com a África, pois muitas pessoas da ilha nasceram na Tunísia. Para alguns, o desembarque maciço de março não significou necessariamente medo, mas uma maior tomada de consciência. Alguns, que antes não se perguntavam porque essas pessoas enfrentam uma viagem de vida ou morte para chegar à Europa, agora passaram a se perguntar”.
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