No final da década de 1980, quando o bloco socialista do Leste Europeu vivia uma verdadeira revolução, Uwe Peter, correspondente do jornal alemão Sächsische Zeitung na então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), vivia uma das épocas de maior frustração profissional de sua vida: estava proibido de mencionar as palavras ‘Perestroika’ (reconstrução) e ‘Glasnost’ (transparência) nas matérias que escrevia. O mundo socialista no qual Peter vivera desde que nasceu estava se despedaçando e ele não podia falar muito a respeito.
O Sächsische Zeitung, ou Diário da Saxônia, é o jornal de maior circulação naquele Estado e na capital saxã, Dresden.
Depois do colapso do bloco socialista, da queda do Muro de Berlim e da reunificação da Alemanha, Peter e seus colegas jornalistas viveram também uma revolução profissional: pararam de escrever para um órgão de informação do Estado e começaram a fazer jornalismo comercial. O jornal também passou por uma reestruturação total: deixou de ser um veículo de propaganda oficial do Partido da Unidade Socialista da Alemanha (SED, na sigla em alemão) e se transformou em uma organização de mídia autônoma, mas com a necessidade de subsistir sozinha, como toda empresa capitalista.
O Sächsische Zeitung é um dos poucos exemplos de veículos de comunicação alemães orientais que continuaram operando depois da reunificação.
Com a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, os próprios jornalistas tomaram as rédeas do jornal – o que, segundo Uwe Peter, foi uma das etapas mais enriquecedoras da publicação: “A autonomia durou pouco menos de um ano, pois em 1991 o diário foi privatizado. Naquela época, porém, todos experimentamos pela primeira vez o sentimento da liberdade de expressão. Escrevíamos sobre todos os temas e, sobretudo, sobre o que interessava aos leitores.”
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Primeira parte:Na cabeça e na vida de muitos alemães, o muro de Berlim ainda não caiu
Terceira parte: Nostalgia de produtos do leste vira negócio lucrativo
Quarta parte: Partido herdeiro dos comunistas cresce como alternativa da esquerda alemã
Em uma eleição democrática, a própria redação escolheu os novos chefes, enquanto os velhos jornalistas contrários à mudança simplesmente foram embora. “Muitos decidiram sair por conta própria, mas outros tiveram de ser demitidos”, lembra Peter. “Na verdade, compreendo sua posição de resistência, pois eles eram na grande maioria veteranos que haviam enfrentado o nazismo e a guerra. Para eles, o regime da República Democrática Alemã (RDA) foi uma alternativa que deu a eles tudo o que não tiveram antes: estabilidade e segurança.”
Para Peter, a reunificação foi um dos melhores períodos em termos profissionais. “Foi uma época de muita satisfação, pois finalmente pude informar as pessoas sobre o que acontecia por trás da chamada Cortina de Ferro. Aquela frustração de tantos anos terminou quando pude atender à demanda de informação das pessoas”.
O know-how do Ocidente
O grupo de repórteres que tomou as rédeas do jornal tinha conhecimento suficiente para fazer jornalismo, mas não para dirigir uma empresa e torná-la lucrativa. Eles não sabiam como fazer. O jornal foi então comprado pelo grupo editorial Gruner+Jahr, de Hamburgo. E, do Ocidente, veio o know-how.
“Com a reunificação do país, as empresas de comunicação da Alemanha Ocidental pensaram que poderiam incorporar um mercado de 17 milhões de novos clientes. Mas isso não ocorreu e continua sem ocorrer 20 anos depois”, afirma Peter, que, dois anos depois da queda, voltou à Alemanha e foi incorporado à redação como repórter de política.
O fato é que, embora não exista mais um muro físico separando o país, as mentalidades das pessoas do leste e do oeste parecem não estar sintonizadas no mesmo canal. A situação não é diferente quando se fala de jornalismo e interesses editoriais.
“Como em muitas outras coisas, o Ocidente veio nos devorar. O que vivemos foi uma espécie de relação entre caciques e índios. Por isso, além do aspecto técnico que realmente tivemos de aprender – como o uso de computadores e novas tecnologias e o tema da comercialização –, o choque de mentalidades foi forte”, diz Peter.
E este choque continua até hoje.
O jornalista dá um exemplo: “O tratamento da informação sobre alguns assuntos difere. Para os chefes wessis (alemães do ocidente), a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) é uma aliança que protegeu a liberdade e a paz do mundo nos últimos 50 anos. Para a maioria dos ossis (alemães do leste), eu incluído, a Otan é uma organização militar agressiva comandada pelos Estados Unidos e sob as regras norte-americanas”.
As mesmas discrepâncias surgiram na época das Guerras dos Bálcãs. Depois de discussões acaloradas, a visão do leste – contrária à guerra – acabou por se impor. Mas isso não significava que o ponto de vista ocidental fosse censurado. “Os chefes ocidentais escreviam suas opiniões nas colunas, exercendo assim o direito à livre-expressão. E os leitores simplesmente entendiam que o jornal era formado por dois tipos de jornalistas: os do leste e os do oeste”, conta Peter.
Por outro lado, segundo ele, os leitores também agradecem por ler um veículo em sintonia com sua forma de ver o mundo. Prova disso é a pouca presença de jornais da Alemanha Ocidental no lado leste. O jornal semanal Die Zeit, considerado uma das publicações mais sérias e analíticas do país, vende apenas 800 a 900 exemplares por dia na cidade de Dresden, de 500 mil habitantes.
Atualmente, o Sächsische Zeitung é o jornal de maior circulação na Saxônia e na capital estadual, com 270 mil exemplares vendidos por dia. As diferenças entre as mentalidades dos chefes wessis e dos repórteres ossis continuam, assim como as diferenças entre os leitores de sempre e os novos que chegaram do oeste. No entanto, “com tolerância e, sobretudo, tempo, isto aos poucos desaparecerá”, acredita Peter.
“As diferenças existem e continuarão a existir na minha geração e na dos meus filhos, simplesmente porque socializamos durante 40 anos de forma diferente, tivemos outro tipo de educação e experiências de vida opostas. Contudo, em termos profissionais, podemos ver estas grandes diferenças como uma vantagem, pois elas fomentam o debate e aprendemos muito bem a defender nossas ideias”, conclui.
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