Ivonne Vásquez tinha duas grandes paixões. A primeira, retratar o mundo a partir de um teclado, tarefa que exerceu durante cinco anos e meio em quase todas as seções de um jornal de sua cidade natal, San Salvador. Havia apenas alguns dias que ela que havia decidido deixá-la. Para trás, ficaram quatro publicações especiais -impressas e em vídeo- sobre a qualidade da água no Rio Lempa, que atravessa a Guatemala, Honduras e El Salvador.
Um convite de uma amiga produtora a levou à segunda paixão: o mundo audiovisual. San Salvador, Caracas e Ciudad Juárez são os centros nevrálgicos que os documentaristas Mario Araya e Erika Bagnarello escolheram para mostrar como a venda legal e ilegal de armas, um dos maiores negócios dos donos do mundo, guarda uma relação direta com a explosão da violência urbana. O resultado está em Maras, Ninis y Malandros: una guerra no oficial, que estreia em breve na Costa
Sem pensar duas vezes, Ivonne Vásquez aceitou atuar na produção local da parte de El Salvador e, já pôs a mão na massa: levantou telefones, moveu todos seus contatos, disparou dezenas de e-mails, fez estourar seu Facebook. Em 72 horas entrevistaram jornalistas, autoridades governamentais, membros de gangues ativos e que já deixaram a atividade, vítimas, especialistas no assunto e organizações não governamentais, e registraram com suas câmeras, não sem riscos, postais que retratam o drama.
Depois de fazer isso, Ivonne assegura que nos cantos mais violentos do continente, comprar una arma “é mais fácil do que uma caixa de leite”. Nesta entrevista ela conta o porquê.
O que vocês pretendiam discutir quando começaram o documentário e que balanço fazem do trabalho terminado?
Pelo menos no trecho de El Salvador, que é pelo qual eu posso falar, queríamos mostrar quão fácil era conseguir uma arma e como a falta de leis ou a fragilidade das mesmas potencializava a distribuição de maneira legal ou ilegal. Esse aumento de civis armados, não só se reflete nos níveis de violência e de criminalidade, aumenta de forma alarmante o número de mortes diárias por armas de fogo. O processo de entrevistas foi dilacerante, muito desalentador. Não só corroboramos que éramos um dos países mais violentos da América Latina; nos demos conta que aqui comprar uma arma é mais fácil do que comprar uma caixa de leite, e que as gangues podiam obter todo tipo de armamento em um estalar de dedos. São muitos anos em que os governos têm feito muito pouco para acabar com este problema, por cuidar de seus interesses econômicos: já que é conhecido que vários políticos do país são os mesmos donos das companhias que as distribuem ou daquelas que se encarregam de oferecer “segurança”.
Cumpriram seus objetivos?
Sim, acredito que sim. Mostramos a realidade que se vive na América Latina, mostrando de San Salvador, Ciudad Juárez e Caracas que o aumento da violência nas três cidades está inter-relacionada com a venda legal e ilegal de armas e com a falta de um governo que zele pelos interesses da sociedade.
Tendo em conta o assunto e os interesses em que ele toca, você tiveram algum problema durante a filmagem?
Um dos meus maiores objetivos foi conseguir que uma vítima desse seu testemunho, porque a maioria dos meus contatos não se atreviam a fazer isso por medo de represálias. Também foi um tanto complicado gravar algumas tomadas no centro de San Salvador e fazer algumas entrevistas altas horas da noite. No mais, a filmagem se complicou um pouco porque coincidiu com a emergência por conta das chuvas que caíram em El Salvador em outubro, e tivemos que modificar de última hora o plano que havia elaborado durante semanas, sem perder de vista que os elementos essenciais para realizar o documentário não podiam faltar.
Entrevistaram bandidos, membros das gangues, em El Salvador? Como vê essa juventude imersa na violência?
Sim, entrevistamos bandidos, ex-bandidos, e jovens que estiveram a ponto de entrar no crime. Algumas destas entrevistas foram conseguidas com a intervenção de Hommies Unidos e Fundasalva, assim como de outras instituições que não mencionarei por questões de segurança. Enfrentar cada um destes testemunhos foi um objetivo para a equipe, porque em cada relato a violência estava presente e para eles era uma forma de vida, viam isso muito normalmente. Surpreenderam os jovem que decidem entrar: o depoimento mais dilacerante foi sem duvidas o de um menor de idade que teve que matar à queima roupa seu primo de cinco ou seis anos, Mas quando lhe perguntamos como havia conseguido a arma, disse que a gangue havia dado e que para eles não era difícil conseguir. Hoje os integrantes das gangues já não se tatuam, e entrar jovem pode exonerar-los de serem julgados de maneira severa pelo Estado. De modo que entram muito jovenzinhos, e isso se converteu em uma estrategia, e para não serem tachados pela sociedade ou identificados pela polícia pelas tatuagens começaram a desaparecer seus elementos representativos. A “construção do bandido” está mudando.
O que te surpreendeu mais do negocio à medida que foi investigando sobre o assunto?
A forma como as gangues se formam com as armas e se desfazem delas. Em alguns casos, as armas são registradas e em seguida são declaradas perdidas: é aí quando são vendidas a quem faz a melhor oferta, que as utiliza para cometer todo tipo de crime. Depois, deixam as armas jogadas ou as “perdem” e a polícia não pode seguir a pista, porque legalmente foram reportadas como perdidas ou roubadas. Assim, tudo para na impunidade.
Quais são as ações estatais, locais ou internacionais que se implementam para amenizar o drama?
O governo fala que está fortalecendo e melhorando as leis, a polícia diz que está implementando um controle maior da distribuição ilegal das armas, mas a realidade não mudou muito nos últimos anos. Ao contrario, a cifra de mortos aumentou. Por isso, acredito que precisamos de algo mais do que discursos e promessas, precisamos de vontade política por parte do Estado para dar solução ao problema.
O que o documentário vai deixar para os espectadores quando os créditos aparecerem?
Acredito que este documentário demonstrará que portar uma arma não é sinônimo de segurança, nem contribui para diminuir os índices da violência que se vive diariamente na América Latina, apenas os aumenta. Ademais, mostrará aos governos que a diversa gama de crimes que são cometidos diariamente podem se associar a fatores estruturais como a desigualdade social, a péssima distribuição de renda, a cultura da guerra e a pauperização de valores sociais.
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