Palestina, mulher e homossexual. Rauda Morcos carrega um triplo estigma em um país cercado de controvérsias. Apesar de não estar mais à frente da Aswat, a primeira organização para as lésbicas palestinas em Israel, ela deixou uma grande marca na organização. Hoje Rauda dedica-se plenamente à Mantiqitna, uma rede social de ativistas no Oriente Médio formada por membros de destaque do movimento gay na região.
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Susana Mendoza/Opera Mundi
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Cofundadora da Aswat, ela é a primeira palestina a assumir publicamente sua homossexualidade. Segundo Rauda, os desafios encontrados pelos homosexuais são bastante semelhantes, independentemente da localização geográfica. “Se me dizem que, por causa da crença, os muçulmanos são menos tolerantes com a homossexualidade, eu lhes direi o mesmo. Veja o Papa! O maior dirigente religioso do mundo não só não reconhece os homossexuais, como os condena”, sublinha.
Rauda conversou com Opera Mundi sobre a organização que deu tanto apoio a uma das comunidades mais desprotegidas em Israel.
Opera Mundi: Como surgiu a ideia de criar uma organização para lésbicas palestinas?
Rauda Morcos: A Aswat começou em 2001 como um grupo de e-mails, para compartilhar ideias, projetos e ajudar umas às outras, porque não havia nenhum lugar ao qual recorrer naquela ocasião. Depois de algum tempo, decidimos organizar uma reunião para nos conhecermos. Em 2003, tivemos nosso primeiro encontro, cerca de nove mulheres que hoje formam o núcleo da organização. Depois de várias reuniões, nos demos conta da importância de atender adequadamente a comunidade lésbica palestina e decidimos nos organizar. O problema, então, foi que nenhuma tinha a menor ideia sobre como seria isso e nem sequer chegávamos a um acordo sobre como fazê-lo. Decidimos que o melhor na época era que alguma organização nos acolhesse, e entramos em contato com Kayan, uma organização feminista em Haifa que nos deu um escritório e o material necessário para começar.
Fui eleita coordenadora. A verdade, não vou mentir, é que eu não tinha ideia de como começar, estava totalmente perdida. A Kayan nos ajudou muito. Comecei a escrever nossa visão do projeto, objetivo, atividades e entrei em contato com organizações feministas e de lésbicas, até que em 2004 conseguimos nosso primeiro fundo do Global Women Fund e Mama Cash. Na ocasião, tínhamos o mesmo objetivo que temos hoje, o de alcançar a população palestina, assim como a israelense e internacional. Queremos prosperar como grupo. Aqui, já somos 15, e queremos ajudar os 10% da população gay palestina.
Estatisticamente, 10% de toda população é homossexual, e, naturalmente, os palestinos não seriam diferentes.
OM: É mais difícil ser homossexual em uma sociedade muçulmana, sobretudo quando se é mulher?
RM: (suspiro) Não acho que seja fácil ser gay em nenhuma parte do mundo, é sempre igual. Os ocidentais associam ser árabe a ser primitivo, ou seja, homofóbico. A maior parte das sociedades do mundo é patriarcal e isso significa que são homofóbicas. Costumo usar George W. Bush [ex-presidente dos Estados Unidos] como exemplo, um homem que dirigiu um dos países mais influentes do mundo. Para mim, é um dos homens mais racistas, machistas e homofóbicos que existem e era o presidente daquela que se supõe a superpotência do mundo ocidental.
Muitos países europeus não têm nenhuma organização para lésbicas. E na União Europeia, sabe quantas pessoas são assassinadas por ano por serem homossexuais? Centenas, todos os anos, só por serem gays. Mas as pessoas não querem saber, preferem continuar pensando em São Francisco, a capital gay dos Estados Unidos e em como são liberais e progressistas.
Até mesmo em Amsterdã há ataques contra homossexuais, enquanto se supõe que lá a mente seja mais aberta… Portanto, quando me perguntam isso, tenho que dizer que não acredito que dependa do local de nascimento, no Ocidente ou no Oriente, nem da religião. Tudo depende do uso que se dá à religião. Se me dizem que, por nossa crença, os muçulmanos são menos tolerantes com a homossexualidade, eu lhes direi o mesmo. Veja o Papa! O maior dirigente religioso do mundo não só não reconhece os homossexuais, como os condena.
Divulgação/queersagainstaparth
Odeio que o Ocidente nos julgue por nossa religião, porque sei que utilizam isso como uma arma contra nós. Além disso, o modo de vida ocidental não significa nada para mim, não me atrai, e, ao menos na Aswat, não queria imitá-lo. Não teríamos sido bem sucedidas se pretendêssemos atingir nosso povo com os mesmos métodos. Cada país tem que encontrar um método para seu contexto cultural.
OM: Você foi a primeira mulher a dizer que era gay abertamente. Como foi “sair do armário”?
RM: Uau! Eu tinha certeza de que não podia ser homossexual na minha comunidade. Principalmente pela imagem que eu havia formado sobre isso, graças ao estereótipo dos meios de comunicação. Eu também, como palestina, ouvia a mídia falar do meu povo, e foi duro também porque eu era a primeira que fazia algo do tipo, a pioneira, e quando não há precedentes, é sempre mais difícil. Não tinha ideia de qual seria o resultado, mas a verdade é que sempre fui muito independente, até que finalmente resolvi me assumir.
Quando finalmente o tornei público, preciso dizer que me senti totalmente nua. De repente, todos me olhavam e me analisavam na rua, sem nenhuma vergonha. Foi difícil, claro, mas passado um tempo, me dei conta de que isso era na realidade muito bom, porque recebi todo tipo de respostas, desde as pessoas ao meu redor até pessoas que eu não conhecia e que me abordavam na rua. Com isso, finalmente as pessoas se atreveram a se aproximar de mim para perguntar tudo o que antes só pensavam, suspeitavam ou cochichavam.
Alguns me paravam na rua para me perguntar por que eu era lésbica, esclarecer dúvidas ou até expressar seu desagrado. No começo me senti um pouco oprimida, mas finalmente me dei conta do bem que é poder ter essa interação e falar abertamente. Até a minha avó, de 85 anos, me abordou e perguntou: “o que é isso que falam de você, que é uma Elisabetta? Me disseram que é algo muito ruim”. (Neste momento, Rauda começa a rir, jogando a cabeça para trás, e me explica que, em árabe, lésbica é lesbit e que sua avó nem sequer conhecia a palavra).
Achei realmente engraçado, alguém abordou a minha avó e disse a ela que eu era lesbit, e a pobre mulher nem sequer entendeu a palavra, ainda menos o conceito. Mas o que mais me surpreendeu foi a reação quando expliquei à ela o que é uma lésbica. Me disse: “Ah! Então não é tão ruim. Às vezes é melhor não se casar”. Se não tivéssemos esses estereótipos sobre os homossexuais, tenho certeza que todos reagiriam como a minha avó, que nunca ouviu falar sobre isso, nem viu na televisão.
A mesma coisa aconteceu com os meus pais. No começo foi um escândalo, até que me sentei com eles para falar sobre isso e pude explicar com calma. Deixou de ser um problema. Quando se vê a questão de outra maneira e tem a chance de explicar e se expressar abertamente, ela deixa de ser um problema, não tem que ser ampliada.
OM: Em relação ao tema da ocupação palestina, a Aswat tem algum ponto de vista?
RM: Acreditamos que tudo é político, nossa nacionalidade e nosso gênero, isso é o que somos. Não temos nenhuma agenda nem qualquer opinião política sobre isso, a não ser que afete a comunidade homossexual de alguma forma. A Aswat enquanto grupo não tem afiliação nem opinião política, logo, cada membro tem a sua própria opinião sobre isso.
Se há uma manifestação pela ocupação, o muro ou os direitos do povo palestino, que seja patrocinada por alguma organização de mulheres, nós estaremos lá para apoiá-las, mas nunca daremos início a nenhum evento desse tipo.
No verão passado, houve um grande alvoroço porque queriam celebrar a Parada Gay em Jerusalém, e nós fomos contra. Muita gente nos disse que isso significava perder uma oportunidade, mas acreditamos que não se pode celebrar este tipo de evento em um país em guerra, onde muitos grupos de outros países nem sequer poderiam passar devido à política de Israel. Além disso, no verão passado, tínhamos como sócia a organização lésbica libanesa Hellem, e decidimos apoiá-la durante a Guerra do Líbano.
OM: Quais são os principais objetivos da Aswat?
RM: Ajudar as lésbicas da nossa comunidade, mostrar que não estão sozinhas, que não é algo estranho nem desprezível ser gay e conscientizar a população sobre a homossexualidade. Em suma, gerar uma reação positiva sobre isso. Também organizamos reuniões mensais às quais todos podem comparecer, no norte de Israel, em Nazaré, e no sul. Hoje, ajudamos cerca de 30 mulheres e oferecemos cursos o ano todo, assim como publicações trimestrais em árabe sobre o que fazemos aqui. Temos um disk-ajuda 24 horas por dia.
Acredito que nossa luta é parte da luta internacional pelos nossos direitos e é muito importante conhecer as nossas diferenças assim como o que nos une. Também acredito fortemente que juntos podemos fazer um mundo muito melhor.
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