Os chineses são “desajeitados”, querem controlar a matéria-prima mineral da América do Sul e ameaçam o dólar. As três definições foram cunhadas por três diretores e pelo então presidente da Vale, Roger Agnelli, conforme consta em despachos vazados pelo Wikileaks.
Na última semana, a gigante da mineração brasileira negou “veementemente” o conteúdo das mensagens, recusando a hipótese de Guilherme Cavalcanti, então diretor de Finanças Corporativas da empresa, ter participado de reuniões com diplomatas em outubro de 2009.
De acordo com uma mensagem datada de 26 de maio de 2006, o assessor econômico do consulado norte-americano, seu encarregado de negócios e o cônsul-geral, Edmund Atkins, debateram com o então diretor de Relações Internacionais da Vale, Renato Amorim, a influência de petrodólares venezuelanos na América Latina e a ascensão do poder econômico da China na região.
Amorim teria relativizado a possível influência venezuelana e aplicou a maior parte do tempo para sustentar que não via ameaças reais da China aos EUA dentro dos mercados da América do Sul. A ação chinesa em países latino-americanos seria, a seu ver, “desajeitada”.
Referindo-se à visita do presidente chinês, Hu Jintao, a países como Brasil, Cuba, Chile e Argentina em 2004, o executivo teria argumentado perante os diplomatas que houve “mais barulho e expectativas do que resultados”. Amorim concluiu avaliando que chineses e norte-americanos não teriam dificuldades de evitar conflitos em suas ações no continente.
Segundo o documento, investidores chineses precisariam apenas reconhecer a América Latina enquanto uma região mais sofisticada do que, por exemplo, a África, onde o país desempenha papeis “arbitrários” e de caráter “colonizador”.
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Compra de equipamentos
Em outro documento, de maio de 2007, é narrado um encontro entre Roger Agnelli e Tito Martins, presidente da subsidiária canadense da Vale. Os dois teriam se reunido com o embaixador Clifford Sobel para discutir a importância estratégica da América do Sul no setor de mineração e o interesse da China no mercado local de matérias-primas. Em 11 de maio de 2009, uma nova audiência teria ocorrido entre os três, mas, desta vez, com a presença de Cavalcanti. De acordo com o relato, o tema foi a possível compra de equipamentos norte-americanos pela Vale apesar da forte concorrência chinesa.
Agnelli teria enumerado ao embaixador as grandes reservas de urânio, ferro, estanho, ouro, petróleo e níquel da região. Segundo ele, essa seria a explicação para a “avidez chinesa” para abastecer sua expansão industrial a partir das reservas do continente.
Segundo relato do próprio Sobel, Agnelli teria concluído que “o plano chinês é controlar não apenas as reservas minerais do continente mas também as redes de distribuição, de transporte e a infra-estrutura portuária”.
Se a china trancar as reservas africanas, isso criará desequilíbrios no mercado internacional na medida em que os consumidores nos EUA e na Europa terão que pagar preços mais altos”, acrescenta. Assim, o governo dos EUA teria, na visão de Agnelli, que pensar seriamente no que fazer caso os orientais “vençam a batalha por acesso às commodities”.
Contudo, Sobel se surpreende: “Como a CVRD (nome da Vale até o fim de 2007) obtém boa parte de seus lucros recordes de vendas de minério de ferro para a China, em vários sentidos são parceiros”. No primeiro trimestre de 2011, as vendas da Vale à China chegaram à marca de 29,5% do faturamento do período. O percentual é quase o dobro do que atende o mercado doméstico e três vezes superior ao que consome o Japão.
Ameaça ao dólar
Em outro documento emitido pelo consulado dos EUA no Rio de Janeiro, há o relato de outro encontro de Guilherme Cavalcanti com autoridades e empresários norte-americanos. Desta vez, a reunião foi com representantes do Banco Export Import e, novamente, o embaixador Clifford Sobel.
O executivo teria enumerado grandes contratos firmados com empresas chinesas concorrentes das norte-americanas para ilustrar como, “em questão de tempo, chineses poderão competir com a Caterpilar”, multinacional de tratores e veículos pesados.
Com os chineses elevando a qualidade de seus produtos e ampliando a oferta de crédito, os EUA correriam o risco de perder o terreno do dólar enquanto moeda global. Cavalcanti teria especulado que “o próximo passo lógico seria substituir o dólar americano da cesta de moedas”.
Procurada pela Pública, a Vale preferiu não se manifestar. O documento é parte de um dossiê de 2500 relatórios diplomáticos referentes ao Brasil ainda inéditos e que foram analisados por 15 jornalistas independentes.