Os setores poderosos do Paraguai não se adequaram ao contexto mundial posterior à Guerra Fria. Esta é a tese do ex-ministro de Relações Exteriores Jorge Lara Castro para explicar a destituição do presidente Fernando Lugo, em junho, e a rápida iniciativa do governo de Federico Franco em favor da entrada de multinacionais no país.
Para o ex-chanceler, a rejeição local à adesão da Venezuela ao Mercosul se deve à mentalidade de uma classe política que parou no tempo e insiste na luta contra o comunismo, personificado atualmente na figura de Hugo Chávez.
Luciana Taddeo/Opera Mundi
Para ex-chanceler, classe política paraguaia rejeita Venezuela no Mercosul por personificar comunismo na figura de Chávez
Em entrevista ao Opera Mundi, Lara Castro explica como as tentativas de transformar o modelo sócio-econômico do país levaram à derrocada de um governo eleito democraticamente em 2008. Discorre também sobre o isolamento do Paraguai após as sanções regionais e as potencialidades de contribuição da Venezuela para o desenvolvimento local.
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Opera Mundi: Como o senhor analisa o impacto provocado pela destituição do presidente Lugo na política externa paraguaia?
Jorge Lara Castro: Antes de 2008, a política exterior refletia a manutenção de um modelo agroexportador baseado na exploração irracional da terra e no sacrifício humano de milhares de pessoas. O governo Lugo redefiniu essas relações, priorizando a recuperação da soberania e uma integração regional centrada não somente no comércio, mas no desenvolvimento econômico e social. Isso fez com que o Paraguai melhorasse sua imagem, antes altamente negativa e marginal, no cenário internacional. Isso se deve a um maior contato em nível presidencial e da participação ativa da população nas discussões sobre a recuperação de recursos estratégicos. Mas com a suspensão do Paraguai no Mercosul e na Unasul, a conseqüência foi o isolamento do país e um retrocesso no trabalho que tínhamos iniciado.
OM: Mas este quadro de concentração de terra e modelo agroexportador começou a ser revertido?
LC: Geramos confiança externa, que resultou no aumento de investimentos diretos e no crescimento econômico. Evoluímos muito no âmbito do Mercosul, em relação ao orçamento, à organização institucional e ao processo de integração, o que criava condições para a mudança do modelo. Contávamos com grande solidariedade da região, mas isso não pode ser feito de um dia para o outro. Não houve mudanças substantivas na estrutura, mas geramos espaços de participação entre setores excluídos e marginalizados.
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OM: Funcionários da atual gestão afirmam que projetos de instalação de multinacionais, como a Río Tinto, vêm do governo de Lugo. Havia planos para este tipo de desenvolvimento?
LC: O governo do Lugo era muito heterogêneo. Alguns setores apoiavam este projeto da Río Tinto, enquanto outros eram totalmente contrários. Ao transladar o debate à cidadania, fomos construindo uma visão crítica, de que a instalação não era apropriada por responder a uma visão neocolonial. Era um debate político que só se resolveu com a participação de alguns partidários deste projeto no golpe de Estado.
OM: De fato, existem denúncias da presença de lobistas da multinacional durante o julgamento político.
LC: Não só tinha lobistas, como as pessoas vinculadas a eles são os que estão em postos-chave do novo governo. Essa posição a favor da multinacional é aberta, começando pelo atual ministro de Indústria e Comércio [Francisco José Rivas]. O delicado é que uma indústria dessas características, frente a um Estado frágil, acaba controlando as decisões políticas. Neste momento há uma mudança de rumo importante, com negociações aceleradas para todas as instalações possíveis de multinacionais, o que afeta projetos de integração regional. Com isso não se avança na recuperação de nossos recursos estratégicos.
OM: Existe potencialidade de desenvolvimento industrial sem multinacionais, fazendo outro uso dos recursos locais?
LC: Sim, nosso projeto era estabelecer cadeias produtivas, consolidando relações na região. Um deles era a integração energética do Paraguai, do Uruguai e da Bolívia, para fortalecer a estrutura produtiva desses países, com perspectiva de ainda incorporar outras nações pequenas. Mas estes projetos enfrentam resistência de setores que não entendem a dimensão estratégica da América Latina para o desenvolvimento econômico e político de nossa região. Não levam em consideração que tanto a União Europeia, como os EUA, Canadá e México, assim como os países asiáticos, também caminham para o avanço de processos de integração e da construção de novas relações binacionais.
OM: Por que alguns empresários não acreditam no Mercosul e pressionam para que o Paraguai abandone o bloco?
LC: Temos um setor empresarial conservador. Estes debates muitas vezes se dão pelo monopólio dos meios de comunicação, que correspondem a um setor vinculado ao agronegócio e aos poderes financeiros, com uma visão limitada e lucrativa do espaço territorial. O Paraguai é um dos poucos países onde os setores econômicos não pagam impostos, o que ilustra a mentalidade de pouca preocupação com o desenvolvimento local.
OM: Mas para eles qual seria o beneficio de sair do Mercosul? Novos mercados?
LC: É difícil de entender. Somos um país sem litoral, nossa mercadoria tem que passar por territórios parceiros para chegar aos portos. Fazemos fronteira com dois países de desenvolvimento superior ao nosso. Ao sair do bloco, quem vai se interessar em ter relações econômicas internacionais com o país? Essa pressão responde a uma concepção neocolonial de transferência de renda para os países metropolitanos e acumulação de riqueza. Aí está o nosso atraso histórico, na priorização de aliança com poderosos setores econômicos, em vez de desenvolver o país econômica e socialmente.
OM: Existe uma queixa permanente de que o Mercosul não funciona para os países pequenos. Como analisa a participação do Paraguai na troca comercial?
LC: Há mais aspectos positivos, relacionados a avanços e possibilidades, do que os negativos, gerados pelas travas. Existem dificuldades no fortalecimento do bloco porque ele surgiu em um contexto histórico muito diferente, em 1991. Há assimetrias, atrasos e desinteligência entre setores econômicos, que não nos permitem avançar na integração produtiva, apesar da vontade política dos governos. É preciso mudar a perspectiva para que isso se traduza num caminho de benefícios econômicos. Mas o golpe de estado foi justamente pensado para interromper este projeto, investindo em um processo de desintegração.
OM: Acredita que houve ingerência norte-americana para uma desintegração?
LC: Sim, evidentemente aqui ainda se continua pensando com a velha doutrina Monroe. Os setores excludentes não levam em consideração que a Guerra Fria acabou e precisamos adequar o pensamento aos tempos atuais. Há situações em que a presença norte-americana foi muito forte, evitando golpes de Estado. Então chama atenção que, agora, não tenham evitado o golpe.
OM: Como a entrada da Venezuela no bloco comercial pode beneficiar o Paraguai?
LC: Este ingresso é importante não só para a integração e expansão do bloco, como pela forte presença em recursos estratégicos, em um mundo de crise energética. Isso ajudaria no desenvolvimento do bloco e, no caso de Paraguai, mais ainda, já que importamos petróleo e temos uma agricultura que poderia ser compartilhada com a Venezuela. Por outro lado, o novo membro poderia contribuir para um maior equilíbrio regional, fortalecendo a democratização interna do Mercosul. É um peso a mais para superar assimetrias e, neste sentido, o benefício seria direto. Mas aqui ainda primam os critérios da Guerra Fria, do famoso anticomunismo, que antes tinha a União Soviética como fantasma, agora substituído pelo fantasma Hugo Chávez, tratado como um demônio aqui. Então é difícil discutir racionalmente, não há espaço para um diálogo medianamente razoável sobre a Venezuela no Mercosul.
OM: Se o próximo governo eleito não estiver de acordo com a adesão da Venezuela, há possibilidades de reverter a decisão?
LC: A inclusão da Venezuela é um fato. A região teve uma enorme paciência frente à irracionalidade do nosso Congresso, que nunca deu nenhum argumento para o rechaço que não fosse à figura do Chávez. Temos desafios de transformação e a Venezuela poderia contribuir para a integração da infra-estrutura, necessária para adquirirmos maior autonomia. Neste sentido, a adesão era um grande aporte para um projeto de transformação do Paraguai no contexto do desenvolvimento regional.
OM: Porque acredita que a OEA está dilatando a definição de uma posição sobre a situação do Paraguai?
LC: É uma interpretação política sobre como sair dessa crise. Para parte dos setores influentes da OEA, a interpretação é que a violação da ordem democrática se dá através do exercício da força. O grupo que avaliou a situação se guia por um modelinho, de checar se tem tanques nas ruas, perseguição, mortes. Se não tem, se resolveria pela via eleitoral, como os países que saíram dos regimes autoritários. Mas é uma visão descontextualizada, porque os setores mais reacionários e conservadores interromperam um governo que introduzia mudanças gradualmente progressistas. As mudanças políticas pós-ditadura não afetaram a base estrutural do velho modelo de poder, que não é representativo. O que aconteceu aqui foi um “honduraço” melhorado, que se inscreve entre os esforços de promover golpes na região para frear projetos de enfoque em uma democracia mais inclusiva e participativa.