A icônica foto do ex-chanceler alemão Willy Brandt, com olhar firme no muro destruído, brilha em uma das vitrines da avenida Unter den Linden, que desemboca no Portão de Brandenburgo, em Berlim. A imagem é do dia 10 de novembro de 1989, horas após a queda do muro que dividiu a cidade, e que ao mesmo tempo marcou a carreira política de Brandt e de seu Partido Social Democrata, o SPD, de centro-esquerda.
Roberto Almeida/Opera Mundi
Brandt em frente ao muro, em foto de novembro de 1989, logo após a queda. Imagem está exposta no Fórum Willy Brandt, em Berlim
Do lado de dentro da vitrine, o Fórum Willy Brandt, instituto de pesquisa e de memória ao ex-chanceler, conta a conturbada história da Alemanha no século 20 pelo que ele viu ou deixou de ver. Brandt, morto em 1992, conservou tudo o que marcou sua história desde o pré-guerra, quando ingressou na frente de esquerda contra o nazismo, até as cartas que trocou na crise com o então presidente dos EUA, John F. Kennedy, em agosto de 1961, quando era prefeito de Berlim ocidental.
“Mesmo em sua juventude, Brandt [cujo nome verdadeiro era Herbert Frahm] guardou muitos de seus papéis e artigos pessoais. Aparentemente, ele estava convencido de que assumiria um papel importante na história”, afirmou a Opera Mundi o curador do fórum, Wolfgang Schmidt. “As caixas com fotos e documentos, se empilhadas, chegariam a 400 metros de altura”, contou.
Nascido em 1913, o ex-chanceler, que completaria 100 anos dia 18 de dezembro, carrega no currículo a prefeitura de Berlim ocidental (1957-1966), a chancelaria alemã (1969-1974) e um Nobel da Paz em 1971 por ter se ajoelhado em frente ao Monumento aos Heróis do Gueto de Varsóvia, um simbólico pedido de desculpas da Alemanha às atrocidades que o nazismo cometeu na Polônia.
Mais do que isso, Brandt, ao cair de joelhos silenciosamente, cravou a chamada Ostpolitik (ou Política para a Europa Oriental), que reconheceu o governo da Alemanha Oriental, fechou acordos comerciais com a União Soviética e outros países do bloco comunista e, como consequência, polarizou a política externa do país com os desejos conservadores da oposição da União Democrata-Cristã (CDU), alinhada exclusivamente com o mundo ocidental.
“Na época [em 1970] o gesto do chanceler foi bastante criticado. A maior parte da população da Alemanha Ocidental viu aquilo como um exagero. Hoje, o gesto é uma parte vital da memória pública alemã e Willy Brandt tornou-se um ícone político”, explicou Schmidt.
Sua força carismática, capaz de incorporar um Estado e fazê-lo pedir desculpas, levou o SPD a um longo período à frente do Parlamento alemão (1967-1981), que nunca mais se repetiu. O conservadorismo Democrata-Cristão assumiu o poder em 1982 com Helmut Kohl e, à exceção da gestão do social-democrata Gerhard Schröder (1998-2005), permanece à frente do país pelas mãos da atual chanceler, Angela Merkel.
Resistência e nome falso
Desde a ascensão do nazismo, “carisma” pode ser considerada uma palavra perigosa na Alemanha. Brandt fugiu ao carisma de Adolf Hitler quando operou no underground em Berlim na década de 1930. Como membro do Partido Socialista dos Trabalhadores da Alemanha (SAPD), ele participou ativamente da resistência à extrema-direita. Escreveu em jornais-miniatura, como o Kampfbereit (Pronto para a Luta), que fazem parte do acervo em exposição, até fugir para a Noruega.
Documentos da Gestapo, a polícia secreta nazista, mostram que os funcionários de Hitler demoraram quase uma década para descobrir que o “comunista” Herbert Frahm era, na verdade, o jornalista Willy Brandt. A alcunha, usada para manter-se invisível ao cerco do nazismo, acabou com o passar do tempo suplantando seu nome verdadeiro. Tanto que se cadastrou como repórter Willy Brandt para cobrir o julgamento nazista do Tribunal de Nuremberg, entre 1945 e 1946.
Roberto Almeida/Opera Mundi
Credencial de imprensa de Willy Brandt para cobrir os julgamentos de nazistas em Nuremberg, que aconteceram entre 1945 e 1946
Herbert Frahm, ou Willy Brandt, sempre negou ter sido comunista e garantiu nunca ter pego em armas em Oslo, onde viveu durante a ascensão de Hitler, ou em Barcelona, na resistência ao fascismo. “Ainda jovem, ele se opôs aos nazistas, foi exilado em 1933 e pertencia à ‘outra Alemanha’, que ofereceu resistência a Hitler e à sua tirania”, explicou Schmidt.
Após o fim da guerra, em 8 de maio de 1948, durante discurso na conferência do SPD, em Berlim, Brandt traçou seu caminho político no programa de centro-esquerda. Ele classificou a política do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED), alinhado com a União Soviética, como um “arremedo de Marxismo” e afirmou: “A democracia só pode ser estabelecida neste país se ela for reforçada pelo socialismo.”
Muro e malabarismo
Prefeito de Berlim Ocidental entre 1957 e 1966, Brandt assistiu à construção do muro que cercou a cidade. Ameaçado no cargo, sua resposta, no dia 20 de agosto de 1961, foi uma carta-apelo ao presidente dos EUA, John F. Kennedy, pedindo providências, e outra ao então chanceler da Alemanha Ocidental, Konrad Adenauer (CDU).
Kennedy não se opôs imediatamente ao muro, temendo uma escalada de agressões com a União Soviética, e Adenauer, na mesma toada, demorou nove dias para visitar Berlim Ocidental, esgarçando as já estremecidas relações com Brandt e o SPD. As cartas originais, que por si só representam um capítulo crucial na história da política externa mundial, estão expostas no fórum.
Como resultado do passo atrás de EUA e Adenauer, restou ao então prefeito administrar a batata quente, abrindo diálogo com a administração de Berlim Oriental e negociar a permissão de visita de familiares do Oeste para o Leste. A abertura foi ratificada dois anos depois, em 1963, ano em que Kennedy viajou a Berlim e, em discurso em frente ao muro, marcou com uma frase seu apoio a Berlim Ocidental: “Ich bin ein Berliner (Eu sou um berlinense)”, disse.
O sucesso do acordo de passagem, articulado entre Brandt e Berlim Oriental, garantiu ao então prefeito cacife suficiente para disputar e vencer a chancelaria em 1969, em coalizão do SPD com o Partido Democrata Livre, tirando pela primeira vez os democratas-cristãos do poder. O período foi marcado pela Ostpolitik e a continuidade do diálogo, apesar de restrito e polarizado, e da assinatura de acordos entre a Alemanha Ocidental e o bloco comunista.
Todos os passos de Brandt como chanceler até sua queda, em 1974, após seu principal assessor ter sido denunciado como espião da Alemanha Oriental, são apresentados em vídeos, fotos e documentos. “Como chanceler da Alemanha Ocidental, de 1969 a 1974, Brandt contribuiu muito para o fato de que nosso país está agora rodeado de amigos e totalmente integrado à Europa”, afirmou Schmidt.
SPD em baixa
De acordo com o curador, o SPD, hoje em evidente crise, com baixa popularidade frente ao poderio do CDU e da chanceler Angela Merkel, continua alinhado em sua raiz com o pensamento de Willy Brandt. “Nenhum outro líder esteve à frente do SPD por tanto tempo quanto ele. Muitos de seus membros mais antigos entraram no SPD no início dos anos 1970 por Willy Brandt. Até agora, sua promessa de 1969 é repetida: ‘Nós ousamos querer mais democracia’”, disse.
A próxima eleição alemã deve ser realizada entre 1º de setembro e 27 de outubro deste ano. Na última pesquisa de intenção de voto, divulgada dia 16 de janeiro pelo instituto Forsa, Merkel tinha 58% da preferência do eleitorado para continuar no cargo, contra 18% de Peer Streinbrück, o nome favorito do SPD. Mesmo no centenário de seu principal líder, tudo indica que o partido que comandou tem poucas chances de retomar o poder.
Serviço:
Forum Willy Brandt
Unter den Linden, 62-68, Berlim
De terça a domingo, das 10h às 18h
Entrada gratuita
NULL
NULL