Dia 25 de janeiro de 2013. Era mais uma tarde na Praça Tahrir, ponto principal das manifestações desde os primeiros protestos populares que conseguiram derrubar a ditadura de Hosni Mubarak, em fevereiro de 2011. Centenas de pessoas ocupavam o local para lembrar o aniversário de dois anos do início da revolução egípcia e pedir por mais reformas.
“A Irmandade Muçulmana roubou a revolução” e “não mudou nada” eram os principais gritos dos manifestantes que carregavam bandeiras, cartazes e se uniam em grupos para cantar. Uns se diziam desiludidos, outros prometiam novos protestos contra o atual governo e muitos lembraram os mártires da primavera egípcia.
Mas, por trás da multidão em protesto contra os abusos do sistema, existiam mulheres sendo brutalmente violentadas por centenas de homens raivosos. No centro da revolução egípcia, elas foram cercadas, tiveram suas roupas arrancadas e suportaram a penetração de dedos em suas partes íntimas além da humilhação pública.
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Facebook/OpAntish
Protesto do dia 6 de fevereiro de 2013 contra a violência sexual na praça Tahrir
A violência sexual contra mulheres que romperam as amarras da sociedade ao se juntarem, ao lado de homens, à revolução egípcia entra ainda mais em debate nesta sexta-feira (08/03), Dia Internacional da Mulher, quando o machismo é problematizado ao redor do mundo.
Em 2011, dezenas de homens interromperam um protesto no dia 8 de março, no Cairo, contra os abusos e pela igualdade de direitos, ordenando às centenas de ativistas presentes voltarem às suas casas. Na ocasião, sete mulheres foram presas por oficiais e submetidas a “testes de virgindade”. Apesar de o procedimento ser considerado ilegal, os militares responsáveis não sofreram punições.
Dois anos depois, houve aumento da agressão sexual contra manifestantes: no dia 25 de janeiro, pelo menos 25 mulheres foram violentadas na Praça Tahrir, segundo informações do OHCHR (Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU). Em junho de 2012, dezenas de mulheres foram violentadas em uma manifestação contra os assédios no Egito.
Opera Mundi procurou conhecer a história dessas manifestantes, que encontraram barreiras físicas e psicológicas à sua participação política, e entender o que está acontecendo no cerne da Primavera egípcia. Além de encontrar muitas mulheres e homens que recusam a se calar diante do problema, a reportagem descobriu que o abuso sexual pode ser uma tática de repressão.
Leões em volta de um pedaço de carne
“Por favor, Deus, por favor, faça parar”, sussurrava a jornalista britânica Natasha Smith, cercada por centenas de homens que arrancaram sua roupa e sapatos, deixando-a pelada em um chão sujo. A cada segundo, os homens enfiavam seus dedos onde podiam e agarravam, com força, o corpo da jovem. Ela havia sido separada de seus amigos durante um protesto na Praça Tahrir e eles não conseguiram fazer nada, já que centenas de agressores a cercaram.
“Tantos homens. Tudo o que podia ver eram rostos maliciosos, mais e mais rostos sarcásticos e jocosos enquanto eu era jogada pelo chão como carne fresca entre leões famintos”, descreveu Smith. Em apenas um segundo, a praça excitante e com clima revolucionário se transformou completamente: era, agora, o palco de terror para diversas mulheres.
Outras jovens compartilharam da mesma experiência e usam os mesmos adjetivos para descrever o que viveram: eram dezenas de homens de todas as idades que, como animais, se amontoavam desesperados em cima de uma presa. Em alguns casos relatados por organizações feministas, os agressores chegaram a utilizar armas brancas no ataque – sendo que, no mais grave deles, uma faca foi enfiada no genital feminino.
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Em todos os casos conhecidos de violações na Tahrir, as mulheres foram separadas de seus amigos nas partes mais lotadas da praça por uma multidão de homens que lhe cercaram, despiram sua roupa, agrediram-nas, enfiaram seus dedos em suas partes íntimas e as humilharam. Os ataques também costumam acontecer no mesmo local da praça e em um horário determinado da tarde.
Durante protestos contra a ditadura de Mubarak na Praça Tahrir, em maio de 2005, mulheres foram violentadas de uma forma muito semelhante. O episódio, conhecido como “Quarta-feira negra”, foi atribuído a forças governamentais que teriam pagado para grupos atacarem as manifestantes.
Ataque sexual como tática de repressão
É essa regularidade que faz com que ativistas suspeitem que tais ações sejam realizadas de forma premeditada. Os membros da campanha OpAntiSh (Operation Anti-Sexual Harassment) acreditam que existe uma continuidade entre as violações atuais e às da época de Mubarak.
“Não é uma tática nova ao sistema”, diz a Opera Mundi Salma Eltarzi, porta-voz do grupo. “Apesar da revolução, o sistema não sofreu mudanças significativas – eles estão usando a mesma tática. Apenas a liderança do sistema mudou, os outros membros não”.
Eltarzi explicou que o assédio é uma forma encontrada pelos governantes para intimidar mulheres, difundir pânico e medo entre as ativistas e prejudicar a imagem das manifestações. Essas violações aconteceram durante a ditadura, o governo de transição e agora, com a democracia.
“Analisando guerras e outros momentos de conflitos sociais, sabemos que a violência sexual, ou pelo menos a ameaça, pode ser utilizada eficazmente para assustar populações e para levá-las a ceder”, acrescenta a Opera Mundi a pesquisadora Julia Garraio, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
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Grafite no Cairo protestando contra a violência na praça Tahrir
Diversos trabalhos acadêmicos indicam que os ataques contra mulheres são historicamente utilizados como componentes de conflitos sociais e internacionais. “A violência – especificamente, o estupro – foi utilizada sistematicamente como uma tática de guerra pelos militares e governos para favorecer a posição política, social, econômica e religiosa em relação a outros”, explica o artigo de Diana Milillo.
Segundo a especialista, nem todos os abusos cometidos durante conflitos são iguais: na guerra da Bósnia, por exemplo, as mulheres eram estupradas por diversos homens ao mesmo tempo. Há, porém, algumas características que distinguem as violações sexuais perpetradas em guerra daquelas realizadas em situações de paz.
Em conflitos, os ataques tendem a ser mais violentos e agressivos e são direcionados a mulheres envolvidas direta ou indiretamente na prática política – o que pode ser aplicado ao caso do Egito. “Os relatos das vítimas apontam precisamente para ataques coordenados destinados a afastar as mulheres das ruas egípcias – elas que tiveram papel tão importante na revolução”, conclui Garraio.
Culpa é da vítima
Apesar de indicar a característica política dos abusos cometidos na Tahrir, a especialista acredita que não necessariamente o governo está por trás dos abusos. Eltarzi aponta a possibilidade de serem grupos dentro do estado, mas explica que as violações são o resultado de diferentes fatores.
A multidão presente na praça, a cobertura midiática negativa das manifestantes – expostas como prostitutas e levianas -, o discurso de ódio contra mulheres e as altas taxas de assédio no país também levam à violação sexual.
A ativista explica que possivelmente nem todos os agressores são enviados pelas forças governantes, mas que muitos se juntam ao assédio, iniciado por esses grupos organizados. “O estado está encorajando e se utilizando de um discurso machista presente na sociedade egípcia”, afirma ela.
Mesmo pessoas contrárias às agressões acabam cedendo a justificativas opressoras: algumas culpam a vítima – por seu modo de agir ou suas roupas; e outras pedem para as mulheres agredidas permanecerem caladas.
Yahia Zaied, do Instituto Nazra de Estudos Feministas, enfatiza o impacto negativo desta cultura: “o agressor sabe que está a salvo; que todos vão apoiar suas ações ou culpar a mulher. É tudo sobre a dinâmica do poder: o agressor está em uma posição muito mais forte e sabe que nunca será punido”.
Vozes silenciadas
“Quando cheguei ao hospital [depois de ter sido violentada], dois homens me perguntaram: ‘você está grávida? É casada? É virgem?’ Eles pareciam descontentes com minha resposta negativa”, conta Smith, que não conseguiu adquirir tratamento no Egito.
“Mesmo que o governo ou os militares não estejam por trás dos ataques a mulheres na Tahrir, cabe-lhes fazer de tudo para terminar com esses casos: sensibilizar as forças de segurança para agirem (e não, como no passado, serem elas próprias agressoras) e, mais difícil ainda, criar um clima social em que esses ataques não sejam permitidos”, afirma Garraio.
Entre os revolucionários da Praça Tahrir, a principal atitude diante dos casos de violência é pedir para as vítimas permanecerem caladas para não prejudicar a imagem da primavera egípcia. “Eles não estão encarando o assédio sexual a sério e afirmam que existem coisas mais importantes para lidar no momento”, lamenta Eltarzi.
“Eu tenho apenas uma coisa a dizer para esses ativistas: ninguém senão vocês que estão arruinando a revolução egípcia. O que vocês terão na praça sem essas bravas mulheres?”, questiona uma jovem anônima que sofreu abusos em junho do ano passado.
Silenciadas pela sociedade e entre os próprios companheiros, mulheres e homens se uniram em diversas iniciativas para dar um grito alto e mostrar a todo Egito o que se passa nas ruas. Alguns ativistas se aventuram, até mesmo, a impedir o assédio sexual com seus próprios corpos.