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Empresas de tecnologia digital chinesas têm mostrado grandes lucros e avanços sobre a hegemonia virtual norte-americana
Sun Tzu, autor chinês de “A Arte da Guerra“, uma vez disse que a solução para a vitória não é destruir o território inimigo, mas tomá-lo na íntegra. Anos depois, as palavras do pensador tomam forma fora dos livros e das espadas para entrar no mundo digital. Os dragões chineses começam a superar a até agora hegemonia das águias norte-americanas e mostram como a estratégia para o domínio virtual nunca esteve tão concreta.
Quem explica esse avanço é Octavio Kulesz, diretor da Teseo, maior editora digital de livros acadêmicos da Argentina e especialista em mercado editorial de regiões em desenvolvimento, principalmente a China.
A grande comparação que Kulesz faz entre os gigantes norte-americanos e asiáticos se dá com a águia e o dragão – inspirada no artigo de Brett Shehadey no Asian Times. A primeira, figura clássica em bandeiras e até passaportes dos EUA, é um animal que sobrevoa o horizonte com sua visão aguçada e realiza um voo rasante para atacar sua presa. Além disso, sempre retorna ao ninho, inalcançável para os outros animais, para depois voltar à investida.
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Nos primeiros 15 anos da Internet, assim faziam empresas dos EUA. Criaram as raízes do domínio .com, abocanhavam mercados externos e mantinham database e tecnologia seguros dentro de suas fronteiras. Hoje em dia, o ninho pode ser encarado como o sistema clouding de armazenamento de informações.
Acontece que 2012 foi o primeiro ano desde 2003 em que o site de vendas Amazon registrou uma perda tão acentuada quanto US$300 milhões em um único trimestre, e também o ano de bruscas quedas nos preços das ações da Apple. O fenômeno acontece devido ao próprio desempenho dessas empresas, mas também pelo surgimento ou amadurecimento de novos atores, do outro lado do mundo – praticamente invisíveis, mas de fato poderosos.
Alibaba parece título de história árabe nos desertos, mas hoje é nome do maior conglomerado chinês de negócios virtuais, cujas empresas Taobao e Tmall, de e-commerce, superaram em 2012 a renda de Amazon e eBay juntas. O CyberMonday (dia com grandes descontos em eletrônicos) chinês chegou a US$3,1 bilhão, muito maior do que a cifra norte-americana – e a estimativa para 2013 é que esse dia ultrapasse todo o e-commerce dos EUA. Os, por enquanto, 564 milhões de usuários da Internet dentro da China são uma sugestão do que pode vir.
“O choque dos titãs chineses ainda é silencioso, mas impactará profundamente a web como conhecemos“, diz Kulesz. O dragão se vale de qualidades como a agilidade quase invisível e sabedoria milenar para, vinte anos após o fim da Guerra Fria, substituir a URSS como principal oponente da águia yankee.
Estratégia e pensamento
A questão é que a China não enxerga o mundo desse jeito, segundo Kulesz. A estratégia observada por uma série de empresas tecnológicas é de seguir o mandamento de Sun Tzu: abraçar o outro em vez de eliminá-lo. Assim, a Alibaba associou-se à taiwanesa Acer, com uma junção de tecnologia e equipamentos e a China Telecom passou pelo mesmo processo com a Etisalat, do Egito.
O WeChat, análogo ao Whatsapp, trocou seu nome original (Weixin) para ser mais bem aceito e começou seu crescimento por países emergentes, como Índia, Malásia, México e Argentina. A flexibilidade atinge níveis que seriam incomuns para um empresário dos EUA: Jack Ma, CEO da Alibaba, renunciou ao posto em 15 de fevereiro deste ano. O grupo foi dividido em 25 partes para, de acordo com a intenção de Ma, ser capaz de otimizar o trabalho e levar seus produtos a qualquer canto da vastidão territorial da China em 24h. Aliás, o nome Alibaba não é coincidência: “Abre-te Sésamo” é exatamente como Ma recebe outras empresas.
Outra característica parte da fala do CEO da Tencent, Ma Huateng: “Copiar não é ruim”, em contraponto às repetidas falas de Steve Jobs, falecido CEO da Apple, sobre as falhas de outras empresas em copiar a inovação da maçã mordida. O sucesso das empresas chinesas, porém, provam Jobs errado. Só o grupo Tencent abarca 784 milhões de clientes.
O eBay entrou na China e alcançou 79% do mercado C2C (compras e vendas entre consumidores) local. Dois anos depois de a Taobao entrar, em 2005, a participação de mercado do eBay caiu para 36%, obrigando-o a sair do país. A Alipay, também da Alibaba, competiu com a PayPal e venceu. O Baidu, versão chinesa do Google, cresceu quando esta saiu do país em 2010 e não conseguiu retornar em 2012. A Tencent é dona do QQMessenger, versão chinesa do ICQ, e do WeChat, primo do Whatsapp.
O Facebook de lá é o Renren; o Kindle, Bambook (da Shanda); e o Youtube, Yukou Tudou. São vários nomes estranhos para ouvidos ocidentais que, como aspecto comum, imitam os sites e o funcionamento das empresas dos EUA e são líderes de mercado, com dezenas de milhões de clientes. O primeiro, segundo e terceiro site mais visitado no país são, respectivamente, o Baidu, o QQMessenger e a Taobao, segundo a rede Alexa. E crescem também no plano mundial: quinto, oitavo e décimo-primeiro.
Como fazem isso? Além da cópia e do fato de serem independentes do “ninho da águia”, Kulesz ressalta, é claro, o controle do governo. As empresas seguem a linha desejada pelo PCCh (Partido Comunista Chinês) e, em contrapartida, possuem liberdade de ação para os negócios. Algumas até se autocensuram, como a Weibo (microblog que mistura, curiosamente, Twitter e Facebook porque cabe muito mais informação em 140 caracteres chineses do que nos correspondentes latinos).
Durante uma série de protestos em meados de 2009, os posts pelo Weibo se disseminavam de uma forma inaceitável para o governo e a rede simplesmente aceitou levantar a censura. E assim sobreviveu. E o governo exige agora que sejam permitidos somente nomes verdadeiros nas contas dos usuários.
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Quando perguntado sobre quanto esse cenário é sustentável do ponto de vista social, Kulesz explica que é um questionamento natural de uma mente não-asiática – e aí menciona o escritor Martin Jacques como referência para o estudo da mentalidade chinesa.
O governo chinês, segundo ele, não se firma em uma autocracia de cima para baixo, como eram governos árabes derrubados por insurgências populares. É mais uma estrutura completa de pensamento – baseada principalmente no filósofo Confúcio, mais de 500 anos antes de Cristo -, que crê na estabilidade e na hierarquia (e assim aceita, de modo geral, a supressão de insatisfações do povo) para manter um crescimento estável. Kulesz menciona que as metas do governo de crescer mais de 7,5% ao ano, atreladas a planos quinquenais rigorosamente seguidos, são justamente para suportar uma população no lugar. Em 2012, a taxa foi de 7,8%. Por enquanto, o colapso não veio e o pesquisador não acredita que virá em breve.
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Estratégia comum dos EUA é como a águia: manter sua fonte de tecnologia fora do alcance dos clientes, mas ter dificuldade em terrenos estranhos
Tudo isso contrasta fortemente com a estratégia norte-americana para as empresas de tecnologia. A incursão global delas funciona de modo a criar tecnologia e serviços no âmbito doméstico para depois serem exportados com foco na marca do produto. O problema da águia, então, é chegar a terrenos desfavoráveis e ser forçada a andar. Assim aconteceu quando a Apple não conseguiu direitos sobre o nome iPhone no Brasil, pois já havia sido registrado pela IGB Eletrônica, detentora da Gradiente. Ou ainda quando a Amazon, por mesmo conflito de nome, pagou US$6 milhões a uma empresa da Amazônia para conseguir o direito. Na Índia, a Amazon teve dificuldades de se inserir, por causa de uma lei local que exigia a participação com empresas nativas. Justamente o que as chinesas fazem.
Guerras entre dragões também existem, a exemplo da competição entre Tenpay, da Tencent, e Alipay, da Alibaba. No exterior, dificuldades igualmente aparecem. Mas Kulesz acredita que isso é encontrado exatamente quando o dragão peca em uma de suas maiores qualidades e permite ser visto. Para o pesquisador, a empresa de telecomunicações Huawei – cujo 66% faturamento vem do exterior – entrou de forma exagerada no mercado norte-americano e passou a sofrer retaliações.
As acusações de cyberataques feitas por empresas da imprensa dos EUA e pelo próprio governo ressurgiram na mídia neste ano. Kulesz as encara como prova do excessivo receio dos EUA (e lembra o mega bunker de Utah em construção). Os hackers podem existir, mas o que a China realmente deseja é uma cooperação que permita a realização de negócios e lucro.
Isso condiz com a fala do Ministro de Relações Exteriores chinês, Yang Jiechi: “Somos contra transformar o cyberespaço em uma nova arena de combate ou usar a internet como nova ferramenta para interferir em assuntos internos de outros países”. A China mesmo é alvo internacional de hackers e, segundo o Ministério de Defesa chinês, dois terços das 144 mil invasões contra dois site militares em 2012 teriam se originado nos EUA.
Reino do dragão
Se os animais foram a metáfora de Kulesz para os titãs de tecnologia de ambos os países, as estratégias de cada um são como jogos de tabuleiro. O Ocidente é o jogo de xadrez, em peças com funções específicas que objetivam a derrota absoluta do inimigo. Disso, o chinês se apropria somente da lenda que origina o jogo, na qual um simples camponês oferece a novidade para um imperador e pode decidir sua recompensa.
O pedido de um grão de arroz para a primeira casa do tabuleiro, duas para a segunda, quatro para a terceira, e assim sucessivamente parece uma piada para o imperador. No final, porém, são 64 casas e nenhum império teria as toneladas de arroz suficiente para pagar ao camponês. O desenvolvimento econômico do país reflete esse movimento contínuo e crescente. Paralelamente, o jogo go, originado em terras chinesas, significa “jogo de cercar território”.
O avanço já chegou à África. Kulesz cita o ICBC, banco chinês que é também o maior do mundo e o primeiro a se instalar na região africana, de modo que abra espaço para depois empresas chinesas entrarem.
Na América Latina, a Argentina, segundo Kulesz, depende enormemente da China em relação à soja, ao criar uma monocultura cujo cliente principal é o gigante asiático. Ele diz que, por muito tempo e principalmente durante o governo do presidente Hu Jintao, a China aceitava o preço da commodity negociado pelos argentinos. Agora, com a nova direção de Xi Jinping, é difícil predizer se o preço se manterá, mas afirma que o governo chinês será muito mais duro nas negociações.
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DIsputa entre empresas chinesas existe, mas o panorama geral é de alianças com negócios estrangeiros e cada vez mais consumidores
O que, afinal, os EUA podem fazer? Kulesz aponta três possibilidades. A primeira, focar no mercado norte-americano e europeu, cujo público conhece e absorve seus produtos. Uma exceção teria sido a Microsoft, que firmou parcerias com a Huawei para atuar na África. Segundo, associar-se com a China. O que não parece lá muito provável. Terceiro, aumentar a retórica contra o gigante asiático, e o pesquisador cita um livro, a ser lançado em abril por Eric Smith, presidente da Google, que mostra a posição chinesa como “o mal contra o bem”.
Por outro lado, Kulesz pende mais para a hipótese de empresas chinesas crescerem tanto que serão capazes de comprar as norte-americanas. Afinal, ele afirma que não tem como definir esse movimento crescente chinês ou predizer quem passará a dominar o mundo digital. A questão é que a China quer construir uma atualizada Rota da Seda e não quer voltar à condição de colonizada do século XIX, época da Guerra do Ópio. E, ao que tudo indica, os dragões chineses não vão fugir desse objetivo.