É o segundo dia da 142ª edição da Convenção da Associação Nacional do Rifle (NRA na sigla em inglês), em Houston, Estado do Texas. “A guerra já começou! A próxima tormenta que se estende desde o norte vai trazer aos nossos ouvidos o choque das armas contundentes! Nossos irmãos já estão no campo! Por que estamos aqui parados, sem fazer nada?” grita um homem com roupa da época da independência dos Estados Unidos, peruca branca na cabeça, em um corredor vazio do enorme centro de conferência.
Um pequeno grupo de pessoas o escuta, emocionado. Uma senhora assente com força e aplaude. “Há vida tão querida, ou paz tão doce, que possam ser adquiridas pelo preço de cadeias e escravidão? Proíba, ó Deus Todo-Poderoso! Eu não sei que curso podem tomar outros; mas no que me toca, dai-me a liberdade ou dai-me a morte!”, continua o rapaz fantasiado. Harry McKay, ou melhor dizendo, Patrick Henry, revive o espírito de liberdade com uma revogação histórica do famoso discurso “Liberdade ou morte”.
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Ao contrário de Henry, que se expressa livremente no corredor, manifestantes contrários à NRA são confinados em uma calçada do lado de fora do prédio. Proibidos de avançar, eles são protegidos por policiais, que impedem também a aproximação dos donos de armas. Eles gritam e insultam os participantes do protesto, que continuam lendo uma lista com os nomes das mais de quatro mil pessoas que morreram vítimas de armas de fogo nos EUA nos últimos cinco meses.
Heather, natural do Texas, está dormindo há duas noites na rua para organizar as poucas dezenas de pessoas na manifestação. Ela explica porque é contra o uso de armas. “Aqui elas são como um dos tantos jogos consumistas, quase um Play Station. As fabricantes ganham bilhões de dólares graças às pessoas ‘normais’, que acreditam que estão defendendo a liberdade com uma pistola ou um AK-47. Você vê essa gente e pensa em adolescentes mimados, que nunca cresceram e ainda por cima carregam armais letais. É a outra cara do consumismo, a que provoca muitas mortes.”
A contradição que vive os EUA está condensada em Ross, um jovem que protesta contra a NRA, mas é a favor das armas. Ele só quer mais controle. Poucos minutos depois, uma senhora portadora de armas, em total espirito democrático, traz uma caixa de água para os manifestantes, apesar de ser contra o protesto.
Mais tarde, todos aguardam com ansiedade o seminário mais concorrido do dia: “Refuse to be a victim” (Se recuse a ser uma vítima)”. O evento foi realizado pouco após a mesa “Advanced Sausage Processing, BBQ and Smoke Cooking Tecniques”, onde se podia aprender a assar um churrasco em condições extremas, antecedido pelo seminário exclusivo para mulheres que querem aprender a atirar. Mais cedo, todos saborearam o “café da manhã com oração”.
Aqueles que “se recusam a serem vítimas” aprendem como instalar câmeras de vídeo em suas casas, a instruir os filhos a não aceitar doces nem caronas de desconhecidos, como viajar a um país estrangeiro com toda segurança e a fechar portas e janelas. Um seminário de quatro horas para aprender o que em muitos países se aprende com a família.
Em um palco gigante, onde antes havia se apresentado Sarah Palin, está Ted Nugent, uma espécie de Bruce Springsteen ultra conservador e fanático pelas armas. A plateia o considera um herói por saber insultar jornalistas, opositores e a esquentar multidões com seus “discursos patrióticos e em defesa da liberdade”. Após o show, Ted conta que gastou 600 dólares para ser membro vitalício da NRA e se gaba de sua bandeirola com orgulho. Texano, branco e republicano, ele nunca esteve em uma guerra, mas o irmão é marine.
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De que serve ter em casa um R-15? “Bom, antes de mais nada, aqui no Texas existem muitas zonas desertas. Usamos o fuzil para nos defender de coiotes, serpentes, animais que podem atacar casas”, se justifica. A partir da descrição dele e de outras dezenas de pessoas, o Texas e os EUA parecem ser uma selva cheia de animais perigosos, dos quais uma pessoa não pode se defender sem um fuzil semiautomático.
Sobre as mortes causadas por armas de fogo, Peter afirma que, para vencer a violência, não há nada mais útil que se armar. Mas não seria mais provável que, em um país com tantas arma, alguém com más intenções as use para provocar um massacre? “Mas os carros matam muitas pessoas também e ninguém acha que eles devem ser proibidos. É uma questão de educação. Minha filha Janet tem um fuzil desde os sete anos. Agora tem 15 anos e é muito responsável”, conta.
O problema, de acordo com Peter, são os bad guys. E é justamente deles que good guys, como ele, têm de se defender. O cantor complementa: “a segunda emenda da Constituição nos dá direito a possuir e portar armas para nos defender, e ninguém no mundo pode nos tirar esse direito!”, diz com contundência.
Enquanto isso, a hipótese de que esse direito seja eliminado pelo “ditador” Obama provocou um verdadeiro boom nas vendas de armas na convenção. Robert Crescenzi, um ítalo-americano de Miami que vende pistolas Taurus define: “as pessoas pensam que de um dia para o outro vão tirar delas o direito de comprar armas. Então estamos vendendo tudo. Mas não apenas minha empresa. Todos os produtores. Tudo o que é produzido vende. É um momento de ouro!”, celebra.
No “dia da juventude” organizado pela NRA, há um pequeno espaço onde é possível disparar pistolas e fuzis, comer doces e tomar Coca-Cola. Não muito longe dali, saindo do George Brown Center, famílias com crianças brincam – sem armas – em um parque. No mesmo perímetro, os dois lados de um mesmo país convivem. Lá dentro, a convenção da NRA se encerra com sentimento de missão cumprida.