Desde o anúncio da criação da Comissão Nacional da Verdade para investigar crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1984), o Brasil institucionalizou uma discussão que já ocorre há mais tempo e com mais desenvoltura no Cone Sul. Especialistas destes países acham que o projeto do governo brasileiro pode ser modesto e não trazer o resultado esperado pelos defensores de direitos humanos, mas são praticamente unânimes sobre a importância da iniciativa e acreditam que a investigação das violações cometidas pelos regimes militares é um caminho sem volta na região.
“Investigar os crimes é um caminho que dificilmente pode ser evitado porque na região há uma exigência muito clara. Há uma exigência também da comunidade internacional, de vítimas, de alguns políticos, que querem levar à justiça e à verdade”, diz ao Opera Mundi o juiz federal argentino Daniel Rafecas. Para ele, a apuração dos crimes não é apenas um processo inevitável para os países do Cone Sul, mas também essencial para evitar que voltem a ocorrer.
O juiz, um dos responsáveis pelo julgamento de ex-repressores que acontece atualmente na Argentina, acredita que a criação de comissões da verdade “é muito importante para a consolidação da nossa democracia no Cone Sul e para conscientizar a opinião pública de que a preferência é pelo estado de direito em detrimento do estado autoritário”.
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Outros são mais céticos. O advogado uruguaio Óscar López Goldaracena, especialista em direitos humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), que participou da comissão correspondente no Uruguai, por exemplo, acredita que só a investigação não é suficiente. Ele afirma que deve ser anulada a Lei de Anistia no Brasil, pois só isso garantiria a não repetição da repressão.
Ele acredita que a comissão é um “importante instrumento”, mas acha que sua criação deve ser acompanhada “de um acesso claro à Justiça”. Para isso, defende a eliminação dos “elementos jurídicos que amparam a impunidade”. “Aí sim, seria legitimada a comissão da verdade”. O uruguaio considera necessário disponibilizar recursos como dinheiro ou advogados para que as famílias de desaparecidos e sobreviventes possam recorrer.
A Lei de Caducidad, como era chamada a lei de anistia uruguaia, aprovada em 1986, foi anulada após um referendo no dia 25 de outubro do ano passado. Na Argentina, as Leis de Obediência Devida e Ponto Final foram anuladas em 2005.
O ministro brasileiro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, afirmou que a iniciativa de criar a Comissão da Verdade não tem nada a ver com punir repressores até hoje protegidos pela legislação. “Não se trata nem de revisão e nem de anular a Lei de Anistia”. Segundo o uruguaio Goldaracena, isso na prática poderá permitir a apuração de crimes, mas continuará impedindo o julgamento dos acusados.
Começa assim
Já o jornalista argentino Horacio Verbitsky, criador do diário Página 12 e uma das principais figuras da luta pelos direitos humanos no país, acredita que a comissão pode futuramente alterar a legislação, já que o caminho percorrido pela Argentina e Uruguai foi semelhante. “Começou com uma comissão de apuração”.
O cientista político argentino Hernán Rodríguez, da Universidade de Córdoba, é contra a iniciativa brasileira por defender que a investigação dos crimes provocará um mal estar interno, já que muitos políticos do PT, partido que governa o país, foram presos e torturados na ditadura. “As comissões da verdade na Argentina têm servido apenas para polarizar o país, para impedir seu progresso econômico”, disse. Verbitsky não concorda. Para ele, a investigação dos crimes e anulação das leis são uma exigência da população.
Neste mês, foi oficializada a exoneração do general Maynard Marques de Santa Rosa, que chamou de “comissão da mentira” o projeto do governo brasileiro. Tanto as críticas do militar como a exoneração foram noticiadas pela imprensa internacional e foram temas de artigos em jornais como os diários argentinos Pagina 12, La Nacion, a edição eletrônica do colombiano El Espectador, o espanhol El Pais e a revista inglesa The Economist. Mesmo os veículos mais condervadores se posicionaram a favor da exoneração.
“Acredito que a política de Estado que está sendo seguida na Argentina há quase uma década, uma política coerente, firme, sem pausa, e que conta com o convencimento da classe política, da opinião pública e da comunidade internacional, contagiou a região”, analisa o juiz Rafecas.
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