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Governo dizia que polícia não agiria, mas manifestantes foram expulsos da praça Taskim
A Turquia vive intensos protestos há duas semanas, porém nem todos os turcos sabem o que se passa ao longo do país, que sofre um “apagão midiático”. Diante disso, as redes sociais se tornaram uma válvula de escape para a população que se sente oprimida pelo crescente autoritarismo do primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan.
“Não sabemos nada que está acontecendo nas outras cidades através da imprensa, apenas das redes sociais. Lá, marcamos os protestos e divulgamos o que ocorreu neles, com fotos e vídeos”, relatou a professora de português, Karin Queiroz, uma paulistana de 42 anos, que vive em Istambul desde 2010.
As plataformas sociais são as alternativas para saber o que se passa no país, pois a mídia tradicional é controlada pelo governo. “As redes sociais foram a porta para a divulgação de todo o protesto. Tudo é organizado e divulgado pelos manifestantes pela internet”, explicou a professora de educação física e de inglês, Elaine Yalçin, 26 anos, um pernambucana que está em Istambul há três anos.
Elaine conta duas situações, que, para ela, foram emblemáticas. “A CNN International transmitia a cobertura completa dos protestos, enquanto a CNNTürk apresentava um documentário sobre pinguins”, comentou.
“Em outro canal, um repórter turco tentava mostrar que tudo estava sob controle em Ancara, mas de repente deparou-se com a polícia atirando gás lacrimogênio e jatos d'água nos protestantes apenas um minuto depois dele ter feito a afirmação. Obviamente a transmissão foi encerrada no mesmo momento”, exemplificou a pernambucana.
Arquivo Pessoal
Elaine vive na Turquia há três anos, mas estuda voltar ao Brasil se autoritarismo aumentar
Além da CNN International, apenas a emissora oposicionista Halk Tv transmite os conflitos 24 horas por dia. O que lhe rendeu uma multa de 10 mil liras turcas por, de acordo com o governo, “prejudicar o desenvolvimento físico, moral e mental das crianças e dos jovens”.
A imprensa turca vive paradoxalmente num fogo cruzado: sob o poder do governo – que tem processado e prendido jornalistas que divulgam informações contrárias aos seus interesses – e a intensa crítica e revolta da sociedade.
Com o controle da imprensa local, Erdogan volta as atenções para as redes sociais. Na semana passada, o premiê definiu o Twitter como uma “ameaça” à sociedade. “Os melhores exemplos de mentiras podem ser encontrados lá. Para mim, a mídia social é a pior ameaça para a sociedade”, sentenciou o premiê.
A preocupação do governo com o poder das redes sociais é tanta que a polícia turca deteve ao menos 25 pessoas por disseminar informações falsas e incitar protestos pelo microblog.
Além do Twitter, pode-se encontrar grande quantidade de informações sobre as manifestações em sites que se dedicam a reunir textos, fotos e vídeos. Entre eles estão No Revolt in Turkey, Occupy Gezi, Turkish Police Brutality e Diren Gezi Park.
Protestos
Os protestos começaram inicialmente por causa da construção de um centro comercial no parque Gezi, em Taskim, centros de Istambul. Contudo, a manifestação logo ganhou conotação política contra o primeiro-ministro turco e seu governo.
“O protesto começou porque o governo quer destruir o único e último espaço verde do bairro de Taskim”, explicou Elaine. “Desde o primeiro dia a polícia agiu com muita violência contra os pouquíssimos protestantes pacíficos que estavam no local. Logo, outros manifestantes de toda a Turquia juntaram-se e o foco ampliou”, agregou.
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Karin conta que está participando diariamente dos protestos, apesar de cada vez mais preocupada com o perigo. “Na terça-feira (11/06), alguns policiais a paisana se infiltraram entre os manifestantes e começaram a jogar coquetéis molotov”, relatou a paulistana, que participa dos protestos desde o segundo dia, junto ao marido turco, Burak Demir, de 40 anos.
“A polícia jogou tanto gás de pimenta na gente, que não tínhamos nem máscara decente para nos proteger. Ninguém conseguia respirar direito. Depois veio o batalhão de choque e o caminhão pipa para jogar água, nós corremos e mais gás de pimenta foi disparado”, contou Karin.
Burak Demir/Opera Mundi
Protestos foram iniciados por construção de complexo imobiliário no lugar do parque Gezi
“O governo disse na terça-feira (11/06) que não ia tocar no parque, porém à noite atacou sem piedade. O governador de Istambul, Hüseyin Avni Mutlu, disse que era para as pessoas voltarem para casa, pois não poderia garantir a segurança delas. Se é ele quem controla a polícia, como não pode garantir a segurança?”, indagou a paulistana.
Ao contrário dos últimos dias, nesta quinta-feira (13/06), os protestantes puderam ficar tranquilos na praça Taksim e no parque Gezi. “Ontem, em Istambul, o dia foi de paz e música no parque. Mas em Ancara houve confusão e gás de pimenta”, relatou Karin.
Segundo Karin, a atmosfera na cidade está bem dividida. “Um misto de medo e euforia, pois muitas pessoas acreditam que lutando vão conseguir resistir e conquistar seus direitos. Outras acreditam que isso é uma armadilha”, comentou.
Autoritarismo
A insatisfação perante o governo era latente. Logo, segundo Karin, a população aproveitou o protesto contra a destruição da praça para mostrar seu descontentamento com o governo, que está cada vez mais autoritário.
Dentre as medidas adotadas por Erdogan estão a detenção de opositores políticos, o cerceamento da imprensa, a proibição de consumo de álcool em público e a implementação, ainda que seletiva, da leitura do Alcorão nas escolas. “Na Turquia, há 67 mil escolas e 85 mil mesquitas. Ele está levando a religião para as escolas e, em breve, somente quem é rico e pode pagar uma escola particular vai poder dar uma educação secular aos filhos”, explicou Karin.
Apesar de alguns traços análogos e de constante comparação à “Primavera Árabe”, que ocorreu em dezembro de 2010, há significativas diferenças entre as manifestações, como o fato da Turquia não ser árabe, ser um Estado secular e estes protestos em Istambul, Ancara, Izmir e outras cidades pelo país não visarem derrubar uma ditadura, mas evitar que uma se construa.
“Não acredito que seja uma ‘Primavera turca’. O que acontece é que o Erdogan não respeita a Constituição do seu próprio país e mantém-se em uma posição de ditador perante a população”, ponderou Elaine, acrescentando que “não há referendos para questões críticas e a censura é crescente”.
Istambul é uma cidade cosmopolita, “ocidentalizada” e que está sofrendo um processo de islamização. Contudo, segundo Elaine, está perdendo o brilho por causa do governo atual que insiste em colocar a religião como princípio de tudo. “Até carinhos e beijos em público são proibidos. A Turquia já foi um Estado laico, mesmo com a grande maioria muçulmana, espero que voltemos em breve a este contexto”, ponderou.
“Se o governo continuar e tivermos que seguir algo por obrigação, logicamente não morarei mais aqui”, finalizou Elaine, que diz adorar viver em Istambul.