Assim como no Brasil, a discussão sobre a diminuição da maioridade penal é tema recorrente na Argentina. A diferença é que muitos argentinos querem que o limite baixe para 14 anos. No país, o adolescente pode ser julgado como adulto aos 16 anos, mas irá cumprir a pena em local específico para sua idade, distinto dos detidos considerados adultos. Recentemente, um episódio envolvendo um político governista desatou novamente o debate.
Em resposta à pergunta de um jornalista, o principal candidato kirchnerista a deputado federal nas eleições de 27 de outubro, Martín Insaurralde, disse ser favorável à “diminuição da maioridade penal”. A declaração causou uma onda de polêmica que atravessou todas as forças políticas e que, ao mesmo tempo, evidenciou os diversos pontos de vista que convivem dentro do oficialismo.
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Cartaz eleitoral de Insaurralde (à esquerda), candidato do kirchnerismo nas eleições legislativas de 27 de outubro desse ano
De acordo com pesquisas, a insegurança é uma das principais preocupações da sociedade argentina. Os meios de comunicação ajudam a construir o sentimento de insegurança, publicando nas capas acontecimentos sem relevância jornalística. Como exemplo, há poucos dias, o Clarín — o jornal de maior tiragem nacional — noticiou um assalto a uma pequena loja sem nenhuma consequência fatal.
Até agora, o kirchnerismo tinha se mostrado mais próximo às posturas que rejeitam as soluções penais para os problemas sociais. Inclusive, tinha se manifestado a favor de estabelecer um regime penal juvenil para proteger os jovens em conflito com a lei e assim dar-lhes um devido processo judicial com garantiras de defesa para sua proteção.
Frente à declaração de Insaurralde, membros da direita e centro-direita, como o prefeito da cidade de Buenos Aires, Mauricio Macri, e o deputado federal Francisco de Narváez, se pronunciaram em seu favor. O governador do estado de Buenos Aires, o kirchnerista Daniel Scioli, cuja política em matéria de segurança é questionada por um amplo leque de organizações sociais, fez o mesmo. Uma de suas últimas propostas fala em minimizar a possibilidade de obter liberdade provisória e endurecer as penas para os delitos comuns.
“Se é correto que o tema seja debatido, não é saudável que isso seja feito no contexto de uma campanha eleitoral, já que as posturas se polarizam e alimentam a sede de linchamento da sociedade. Creio que há um vínculo entre aqueles anos nos quais os setores da direta diziam que era necessário usar ‘tudo’ para acabar com a ‘delinquência juvenil’”, disse a Opera Mundi a criminologista Claudia Cesaroni, diretora do Cepoc (Centro de Estudos de Política Criminal e Direitos Humanos). “Quando se fala de ‘tudo’, abre-se a porta para qualquer tipo de método”, definiu a advogada.
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Depois do furor inicial com as declarações de Insaurralde dentro do kirchnerismo, boa parte da força política criticou o candidato. Juliana Di Tullio, atual deputada e segunda candidata da lista, disse que “a maioridade penal não é uma questão debatida. Se trata de uma posição pessoal de Insaurralde”. Outros setores oficialistas optaram por um discurso ambíguo, mas terminaram fazendo uma proposta que se alinha com a diminuição da maioridade penal.
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As contradições do oficialismo refletem o paradoxo que existe na sociedade sobre como abordar o tema da insegurança e seu suposto vínculo com os jovens, aspecto que foi chave para fazer a balança eleitoral, nas primárias de 11 de agosto, pender para o lado da oposição, segundo analistas.
Apesar da polêmica, fato é que as cifras oficiais mostram que na Argentina o crime e idade de punição não têm relação. Dados da Procuradoria Geral da Suprema Corte do estado de Buenos Aires — organismo oficial que concentra os promotores e rende todas as causas penais que são abertas no estado mais populoso do país — são categóricos: em 2012, 4,3% do total de delitos foram cometidos por menores de 16 anos. Os restantes 95,7%, por maiores de idade. Menos de 1% dos homicídios foram protagonizados por jovens. Dos 30 mil crimes cometidos por jovens, somente três foram sequestros extorsivos.
A Opera Mundi, Claudia Bernazza, ex-deputada federal da aliança de orientação peronista Frente para a Vitória e doutora em Ciências Sociais, pesquisadora e docente da Flacso Argentina, acrescentou que “o debate sobre as consequências de uma ordem social injusta e sobre a emergência de uma cultura de exclusão deve ocupar um lugar prioritário na agenda pública. O debate é enriquecedor e agradeço por pertencer à única força política que, em um exercício de democracia interna, o está viabilizando para toda a cidadania”.
Idades e penas
A lei atual referente à responsabilidade criminal de menores foi estabelecida pelo decreto da ditadura militar de Jorge Videla, em 1980, que estabelecia a idade de 14 anos. Mas o governo argentino aumentou essa idade para 16, depois da restauração da democracia no país em 1983.
A norma da ditadura estabelece que os jovens menores de 16 anos sejam privados de sua liberdade ,sem direito à defesa, sob a decisão arbitrária de um juiz de menores. Eles ficam em um regime de tratamento especial até chegar à maioridade. Os jovens de 16 a 18 anos já são considerados imputáveis, e, apesar de serem julgados em um regime especial, recebem as mesmas penas que os adultos.
A Argentina tem um alto nível de privação da liberdade de jovens em relação à quantidade de habitantes. Dados da Secretaria de Direitos Humanos da Nação dão conta da existência de 19.500 jovens menores de 18 anos em situação de confinamento. Deles, somente 12% estão confinados por motivos penais.
Além disso, a Argentina é um dos poucos países do continente com jovens — seis — condenados à prisão perpétua. Essa situação fez que com o país chamasse a atenção da Corte Interamericana de Direitos Humano, que exigiu a adequação imediata da legislação penal juvenil às disposições internacionais de proteção à juventude.
Essas políticas sistemáticas de encarceramento dos jovens também esquecem que muitos deles são recrutados por maiores para cometer crimes. Segundo detalhou em um gráfico o defensor juvenil de La Plata, Julián Axat, “a maioria dos jovens recrutados possui antecedentes em sistemáticas privações de liberdade e entradas em agências de proteção e promoção de direitos, sem respostas adequadas e efetivas para sua situação social, incapazes de interromper o círculo de entradas e saídas sistemáticas no circuito policial-assistencial”.
Ainda segundo ele, “os aspectos de instrumentalidade do recrutamento juvenil estão em geral vinculados ao narcotráfico (como mulas, soldados ou consumidores), ao tráfico de armas, aos roubos de peças automotivas, e aos roubos seletivos a determinadas casas”.
Ainda assim, quando essa situação de recrutamento juvenil é detectada, não há um aumento da gravidade das penas para os maiores: o recrutamento não está previsto em nenhum artigo do código penal. Trata-se de uma ausência sobre a qual nenhuma força política até agora se pronunciou.