No momento em que a Síria tem seu arsenal químico inspecionado por agentes internacionais, jornalistas que cobrem o conflito passaram a desempenhar o papel de “forças de paz”, ou peacekeepers (em inglês), define o jornalista sírio Hamoud Almahmoud, editor-chefe da revista Aliqtisadi.
“Na minha opinião, tanto os jornalistas internacionais quanto os locais atuam como se fossem os capacetes azuis de missões de paz na Síria. Eles têm um papel de manutenção da paz. Não temos tropas, mas temos pelo menos alguns jornalistas para fazer isso, pois eles estão tentando cobrir o conflito e massacres”, disse Almahmoud a Opera Mundi.
Fabíola Ortiz/Opera Mundi
No país onde não há leis que garantam a liberdade de expressão e de imprensa, exercer a profissão de jornalista se torna cada vez mais uma atividade de alto risco. Na Síria, profissionais de imprensa se tornaram alvo tanto de opositores, quanto por forças do presidente Bashar al Assad.
[Hamoud Almahmoud é editor-chefe da revista Aliqtisadi]
De acordo com o Comitê de Proteção aos Jornalistas, a Síria é hoje o país mais perigoso para a prática do jornalismo, com um total de 17 mortos só neste ano e mais de 200 desde o começo da guerra civil. Em termos de comparação, durante os seis anos da Guerra do Iraque (2003-2009), 139 jornalistas foram mortos, sendo a maioria iraquianos.
“Os jornalistas são sempre alvo porque buscam a verdade e tentam cobrir os diversos lados. Mas acho que isso não deve fazer com que o jornalista desista”, admitiu Almahmoud.
Jornalismo na Síria
Natural de Raqqa, cidade no norte da Síria, a 700km da capital Damasco, Almahmoud tem 38 anos, é o quinto de dez irmãos e o único que se tornou jornalista.
Localizada no Rio Eufrates, Raqqa foi a primeira grande cidade síria e a primeira capital de província a cair sob o controle dos opositores. A cidade protagonizou um momento importante durante a guerra da Síria. Foram intensos os combates e, na busca por manter a região rica em petróleo, Assad utilizou sua força aérea para atacar Raqqa.
“Escolhi jornalismo porque amava fazer isso. Nos meus tempos de escola, tínhamos crianças no bairro que eram correspondentes e publicávamos no mural da escola”, lembrou. O repórter conta que foi inusitado para um habitante de Raqqa naquela época dizer que iria para a capital estudar jornalismo.
“Eu era um bom estudante, tinha as melhores notas e minha família achou muito estranho que eu fosse estudar jornalismo. Seria um desperdício de tempo, a minha família esperava que fosse fazer engenharia ou medicina”, contou.
Almahmoud terminou os estudos em 1993 na Universidade de Damasco e, desde 2000, trabalha como jornalista profissional na Síria, tendo feito workshops e treinamentos fora do país pela BBC e recebido bolsas de estudo nos Estados Unidos.
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Perguntado sobre como é fazer jornalismo na Síria, Almahmoud é enfático ao dizer que em seu país não existem leis claras para proteger o jornalista ou a liberdade de imprensa.
Rodrigo Delfim/Divulgação
Almahmoud participou da 8.ª Conferência Global de Jornalismo Investigativo, no Rio de Janeiro
Até o ano 2000, os meios de comunicação na Síria eram todos estatais. Depois de 2001, uma nova legislação permitiu a abertura de setores privados, bancos, universidades e também meios de comunicação privados. Centenas de licenças foram concedidas a novos veículos de comunicação na ocasião. Em dois anos, cerca de 300 licenças foram entregues para o surgimento e criação de novos meios.
Esta abertura, no entanto, não durou muito. “Após verem os obstáculos e que não havia, de fato, tanta abertura, muitos destes veículos fecharam. Quando a crise começou, tínhamos 10 ou 15 veículos no país”, disse.
Como o mercado da comunicação era restrito em seu país, foram sete anos trabalhando para um jornal do governo, depois para a TV síria por mais três, até que começou a publicar na revista Aleqtasadi, que significa economista em árabe. Hoje, como editor-chefe da publicação especializada em negócios, Almahmoud conta que, em tempos de guerra, não se pode separar política de economia.
Como fazer uma cobertura de guerra na Síria?, perguntamos ao repórter. “Não dá para analisar a situação da desvalorização da moeda síria, se você não faz uma análise política também. Mas tem se tornado cada vez mais difícil publicar sobre o que costumávamos escrever. O que já foi muito comum, hoje é perigoso”, admitiu.
Censura
A vigilância, o controle e a censura por parte dos órgãos do governo é permanente. Não raro, jornalistas e editores são chamados pelas autoridades para dar explicações sobre seus artigos. “Nós somos constantemente acusados. Já disseram que a revista foi responsável pela grande desvalorização da moeda síria”, ressaltou.
Criada em 2004, Aliqtisadi já teve uma circulação impressa de cerca de 10 mil exemplares, mas a sua versão impressa deixou de existir. Com a dificuldade e os altos preços do papel, a publicação passou a circular a cada duas semanas, mensalmente e depois foi bimestral. Agora ela é apenas virtual e conta com um milhão de visitantes sírios todos os meses.
Como é viver num país considerado de extremo perigo para jornalistas? É possível conciliar a vida profissional com os altos riscos que envolvem a profissão? Almahmoud tem uma resposta simples para isso. “Já sabemos que a Síria é o país mais perigoso para viver e exercer o jornalismo, e tentamos lidar com isso e sobreviver, mas não nunca se sabe. Há diversas formas de publicar as matérias e enviar as mensagens que queremos passar.”
Na sua opinião, a credibilidade da revista é atestada quando os canais estatais e os de oposição reproduzem ao mesmo tempo as informações publicadas pela revista pública. “Como falamos de economia, as pessoas já tem uma confiança na revista”.
Fabíola Ortiz/Opera Mundi
Mesmo assim, ele admite não ser fácil investigar e confiar nas inúmeras fontes de informação. Tanto governo, quanto oposição tendem a passar informações falsas, segundo o jornalista. “Sabemos que existe esse tipo de divulgação falsa por todos os lados. Em geral há muitas incertezas sobre as fontes. Tentamos investigar a credibilidade de qualquer nova informação, mas não apenas confiando em uma única fonte, tentamos convergir as evidências”, explicou.
[Sabemos que a Síria é o país mais perigoso para exercer o jornalismo. Tentamos lidar com isso e sobreviver, diz]
Insegurança e ataques
Mesmo assim, a vida como editor chefe de uma das revistas mais respeitadas da Síria não parece ser fácil. Almahmoud já foi chamado inúmeras vezes pelas forças de segurança do governo para se explicar, foi levado a tribunal, processado em 2010 por uma reportagem investigativa da revista que denunciava um escândalo de corrupção envolvendo um grande empresário do país e membros do governo. O caso se desenrolou por dois anos e meio e ele não foi condenado.
Perguntado se tem medo de ser preso, o jornalista de Raqqa admite que este risco é diário. “Vivemos com esta sensação todos os dias. Quando ouço baterem na minha porta sem nenhuma razão específica, penso: ‘será que fiz alguma coisa errada para ter gente batendo na minha porta, quem poderá ser’…. Com o passar do tempo, você se acostuma e pensa… estou pronto, se quiserem podem me prender”, relatou.
Ele conta que já recebeu ameaças por telefone e de pessoas que o abordaram na rua. Este ano, ele sofreu uma ameaça direta de alguém que acusou a ele e a revista de serem traidores. “Em um país em guerra, é fácil acusar o outro de traidor”, frisou.
Em setembro de 2012, sua casa no bairro de Jaramana, no subúrbio de Damasco, foi atacada. A explosão de um carro-bomba na rua atingiu em cheio sua casa. “É comum haver ataques em Jaramana, lá é a linha vermelha de conflito entre o governo e os opositores. Perdi minhas coisas particulares em casa, mas na hora da explosão eu não estava”, lembrou.
Meses antes, a redação da revista no centro de Damasco não saiu ilesa. A revista foi alvo de um ataque. “De fato não tenho pistas de que eu seria o alvo. Nos dois ataques, muitas pessoas que estavam nas ruas morreram”.
Almahmoud estava no escritório quando ocorreu a explosão. “Eu havia acabado de chegar à redação, sentei na minha mesa e lembrei que iria fazer um café. Quando fui à copa, todas as janelas explodiram. Tínhamos 10 jornalistas, entre mulheres e homens, que ficaram machucados com estilhaços de vidros”, lembrou.
Ele afirma ter perdido amigos jornalistas pela violência. Um repórter da revista correspondente em Homs está sequestrado há dois anos. Na região oeste da Síria, Homs é segunda maior cidade do país e um reduto opositor contra Assad. “Não sabemos se ele está vivo e também não sabemos quem o levou. A esposa ainda está tentando encontrá-lo”.
Outro colega jornalista foi morto no início de 2012. Ele integrava o Arab Reporters for Investigative Journalism Network, uma rede de apoio baseada em Amã que promove o jornalismo investigativo em nove países árabes.
“De fato, nós nos acostumamos a isso. Se você está na Síria, acaba sempre se comparando a outros que estão em situação pior. No nosso caso, foi só o escritório e parte da minha casa. Eu fiquei vivo. Não é tão ruim se comparado a famílias que perderam tudo”, ponderou.
Apesar das dificuldades, Almahmoud afirma que não vai desistir da profissão, nem de seu país. “Quando meus colegas souberam que eu iria para Washington em um evento do FMI e depois para o Rio de Janeiro, ninguém acreditou que eu voltaria para a Síria. Não vejo o pedido de asilo político como possibilidade, não gostaria de estar numa posição fraca como esta”.