O tenente-coronel Fernando Cardoso de Sousa, de 63 anos, é um exemplo da ala mais comum dos militares revoltosos envolvidos na Revolução dos Cravos: não teve cargos de comando nem desempenhou, como diz, “grande papel” na concepção política da queda da ditadura portuguesa. “Fui um soldado operacional, cumpri as missões que me foram mandadas”, conta a Opera Mundi com a fala pausada e gestos calmos. Mas foi graças a militares como ele que em 1974, após 48 anos de regime fascista, abriu-se o caminho para a democratização de Portugal.
À época com 23 anos, Sousa era oficial da Escola Prática de Artilharia em Mafra, a 40 quilômetros de Lisboa. Sua principal missão foi aprisionar, junto a dois oficiais, o sub-comandante do Regimento de Lanceiros de Lisboa. Apesar da modéstia com que fala da sua tarefa – “o sucesso deveu-se ao tenente Carmelino Mesquita” –, era uma operação importante. O fracasso de inúmeras missões similares por parte de outros revoltosos causou um dos mais lembradose arriscados momentos da Revolução: o encontro entre as forças do regime e os rebeldes no Terreiro do Paço, estendendo-se por barricadas na rua do Arsenal e tiros para o alto, antes do cerco ao Quartel do Carmo.
O tenente partilha outras semelhanças com os jovens militares da Revolução: a experiência na guerra colonial. Portugal enviou às colônias ultramar 800 mil combatentes ao longo de 13 anos de conflito contra os movimentos de libertação nacional. Pagou caro por isso: 9 mil baixas e 100 mil doentes e feridos, segundo os dados oficiais, além do estrangulamento econômico do país e, peça fundamental para a organização militar que culminou no 25 de Abril, da insatisfação das Forças Armadas.
Arquivo pessoal
Cardoso de Sousa em retrato de 1971: "não se consegue uma revolução com objetivos coorporativos; eles são sempre mais amplos"
Sousa serviu um ano na Guiné, “isolado, sob um calor de 50ºC e 100% de humidade, com insetos, doenças e comendo chispe [pé de porco] em conserva”.
Conheceu poucos portugueses – “um branco na selva não sobrevive” -, mas muitos caboverdianos e nativos recrutados pela então Metrópole. “Educado como fui, não tinha muita consciência da dimensão política da guerra. Sabia que, em termos militares, aquilo era insuportável. Não tínhamos hipótese de ganhar”.
Voltou a Portugal mais convencido da necessidade de mudança, e as demandas inicialmente corporativas ganharam orientação social e nacional. “Para conseguir uma adesão em massa rápida, tem que se apelar ao interesse próprio. Mas não se consegue uma revolução com objetivos coorporativos; eles são sempre mais amplos”, afirma.
Pais e filhos
Quarenta anos depois, o balanço que faz é positivo: para ele, o país deu um salto quanto ao acesso a bens materiais, educação, saúde. Passava as férias da infância na casa da avó materna, na aldeia Anissó, na região do Minho (norte de Portugal). Era impossível ver televisão ou escutar rádio: ali não havia eletricidade. Tampouco se viam automóveis circulando. Hoje é diferente. “Passei da Idade Média à Contemporânea em seis décadas”, conta.
Os pais, empregados em uma loja de tecidos na capital, eram pobres e estudaram até o quarto ano do Ensino Básico. Já os dois filhos de Sousa têm diploma universitário – a mais velha possui dois: em Psicologia e Educação de Infância. A diferença entre ambas realidades é tamanha que chega a afastar as novas gerações do significado do 25 de Abril. “Meus filhos respeitam a Revolução mais por causa de mim do que por terem ganho liberdade, pois não sabem o que é viver sem ela”.
Nem tudo, porém, é razão para comemorar. Pelo terceiro ano consecutivo, a Associação 25 de Abril, da qual é membro, formada sobretudo por quadros das Forças Armadas, recusou participar das celebrações oficiais da data no Parlamento português. A entidade é crítica das medidas de austeridade econômica aplicadas no país. “Imagine o sofrimento de estar em meio a pessoas que não têm nada a ver com os ideais de liberdade. Seria uma presença constrangedora”, confessa.
Diante da crise econômica e da descrença na classe política, a única possibilidade para Portugal, diz, seria a atuação “para além da democracia representativa e dos abaixo-assinados”. Em outras palavras, “é preciso se organizar nas comunidades”. Sousa organizou-se: aposentado, atualmente preside uma associação voltada à inovação e inclusão social. Por isso se reveza entre Loulé, no sul do país, onde está a sede da entidade, e a cidade natal, Lisboa. Esta semana, marcada pelas comemorações da Revolução, ele fica na capital. Despede-se com pressa, e logo entra no Teatro Nacional D. Maria II, na Baixa lisboeta, para participar de uma conferência sobre democracia.