Há algumas semanas, o papel das ONGs está sendo debatido na Índia. A discussão começou quando foi divulgado um relatório do Departamento de Inteligência do Ministério do Interior, vazado para a imprensa, no qual várias organizações e 50 ativistas foram retratados como opositores do desenvolvimento (o mantra da classe política hindu).
Em alguns casos, as organizações foram qualificadas como agentes estrangeiros que fazem parte de uma conspiração para prejudicar a economia nacional que, segundo o documento, teria perdido entre 2% e 3% do Produto Interno Bruto (PIB) devido à oposição a represas e projetos de energia nuclear e de mineração, em particular contra a extração de carvão e metais de uso industrial.
O relatório tem apenas 21 páginas e a assinatura do diretor-adjunto do Departamento de Inteligência, Safi A. Rizvi. Os ministros do atual governo evitaram se pronunciar porque “não estudaram o relatório”, mas seu título é revelador: “Os esforços coordenados de algumas ONGs financiadas no exterior para desmantelar projetos de desenvolvimento hindus”. E nem tudo é “inteligência” nele.
Agência Efe
Narendra Modi, primeiro-ministro indiano, tem ligações com ONG conservadora
“A Índia possui um enorme número de movimentos sociais ou populares que resistem à arremetida dessa economia orientada pelo Produto Interno Bruto”, explica o ativista Xavier Días. “É esse o movimento com o qual as corporações se preocupam”. Dias, conhecido por seu trabalho junto aos povos indígenas do nordeste do país, lembra que as corporações têm uma grande influência sobre o novo governo, o qual financiaram generosamente. “Declararam que essas ONGs anti-PIB são antinacionalistas. Assim, chamam o cachorro de mau para ter direito de matá-lo”.
Nem Rizvi nem nenhum alto comando da polícia quiseram explicar porque há passagens do documento no qual se citam (ou copiam) frases de um discurso do primeiro-ministro Narendra Modi, de 9 de setembro de 2006, no qual o político, que então governava o Estado de Gujarat, ataca ativistas e ONGs, qualificando suas atividades de “conspiração”.
As palavras copiadas de Modi foram a apresentação do livro ONGs, ativistas e fundos estrangeiros: a indústria antinacional, um libelo no qual se defende o desenvolvimento como paradigma econômico e se louva o nacionalismo hindu. Modi falou com amargura do trabalho das ONGs, acusando-as de usar dinheiro em benefício próprio, de desconhecer as necessidades das pessoas e de muitas outras coisas. Mas não ofereceu prova alguma do que disse.
Do Greenpeace a Udayakumar
Modi é mundialmente famoso pelo modelo de desenvolvimento que promoveu em Gujarat durante seu governo de uma década. Suas alianças audazes com empresas automotrizes ou de produção de energia elétrica têm sempre caminhado de mãos dadas com as agressões contra os movimentos sociais. Sua maior obra estrutural, a represa Sardar Sarovar, no rio Narmada, é famosa pelas centenas de milhares de desalojados que provocou e provoca cada vez que sobe o nível do muro de contenção.
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Uma das organizações acusadas foi justamente a Narmada Bachao Andolan (Salvemos o Rio Narmada), uma coalizão de grupos indígenas, camponeses, ONGs e ativistas que conseguiu deter ou postergar muitas obras no rio. As fotos de camponeses pobres resistindo dentro da água que inundou seus vales são igualmente famosas no mundo todo.
Mas o relatório, desta vez, não poupou o Greenpeace, organização apontada por se opor à mineração de carvão e por, supostamente, receber fundos da Europa. O grupo que dirige o escritório do Greenpeace negou que sejam agentes estrangeiros e disse que 60% de seus fundos provêm de doações da Índia.
Também foram acusadas a ActionAid, uma das mais antigas ONGs hindus, e a Survival International, por sua participação na década de resistência à mineradora Vedanta nas colinas de Niyamgiri. O mesmo acontece com a União Popular pelas Liberdades Civis, o grupo mais antigo de defesa dos direitos humanos.
Greenpeace
Imagem de protesto da ONG na Índia
“O primeiro passo é atacar sua base apoio financeiro”, explica Días a Opera Mundi. “Se [o novo governo] ameaçou as ONGs ambientalistas em suas primeiras semanas [de mandato], pode-se imaginar o que serão os meses que virão quando consolidem sua posição”.
A direita e o perfil da caridade
Das quase 3,5 milhões de ONGs que existem hoje na Índia, apenas algumas centenas estão ativas em ecologia, direitos humanos ou direitos dos intocáveis e dos indígenas. Outras são organismos políticos, como a Rashtriya Swayamsevak Sangh (Organização Nacional de Voluntariado ou RSS), que, nas últimas décadas, recebeu milhões de dólares de diversas ONGs que fundou para receber dinheiro.
É conhecido o papel da RSS no doutrinamento conservador e religioso no país, assim como sua influência no governo, cujos líderes se formaram nela (Modi é membro ativo desde 1971). Mas pouco se discutiu sobre como financiam suas atividades. Graças a outro relatório, publicado algumas semanas depois do relatório de inteligência, sabemos que suas atividades de apoio à família e à juventude receberam cerca de 3 milhões de dólares nos últimos 12 anos (arrecadado nos Estados Unidos, entre os migrantes que vivem lá).
Tal relatório, sem assinatura, mas produzido em um conhecido centro de pesquisa social em Mumbai, também deixa claro que o dinheiro arrecadado chega a 55 milhões de dólares para obras de caridade no mesmo período.
A RSS e suas ONGs financiadas o usaram para treinar grupos civis conhecidos por suas agressões contra a comunidade muçulmana (entre outras ações xenofóbicas) ou para publicar panfletos que explicam como a mitologia hindu é, na realidade, “história”, ou mencionam “a enfermidade ocidental do homossexualismo”.
A maior ONG da Índia, com 2,5 milhões de membros, financiou sua maior atividade há dois meses: militantes (que se vestem de cáqui) foram capacitados capacitando militantes (que se vestem de cáqui) para “motivarem” os eleitores a votarem em Modi, o que se traduziu em centenas de denúncias por ameaças e chantagens, mas que também obteve “excelentes resultados” em Estados com população muçulmana abundante.