Naquele 26 de dezembro de 2009, Dora Alicia Sorto, grávida de 8 meses, olhou para o marido, José Santos Ramírez, enquanto ele conversava sem muita pressa com Francisco Pineda, ambos gerentes do Comitê Ambiental de Cabañas (CAC). Eram dias amargos e difíceis para os membros das organizações que encabeçavam a luta contra o projeto de mineração El Dorado, da companhia canadense-estadunidense Pacific Rim Mining Corp.
Giorgio Trucchi/Opera Mundi
Em 2004, a Pacific Rim Mining iniciou análises do terreno e tirou grandes quantidades de água do rio São Francisco, en El Salvador
Dora Alicia os deixou conversando, pegou seu menininho de 2 anos, um cesto, e se dirigiu ao rio para lavar roupa. Horas depois, enquanto Francisco estava se despedindo de José Santos, ouviram disparos. Os dois homens institivamente se agacharam, depois reagiram e, acompanhados por vários moradores, correram em direção ao rio.
Leia a primeira parte:
Crescimento da indústria mineradora na América Central produz mitos, paradoxos e realidade trágicas
Quando chegaram ao local, o corpo de Dora Alicia jazia de boca para baixo na encosta do rio. Vários tiros de bala haviam ceifado a vida dela e do pequeno que carregava no ventre. Por sorte, o outro menino só teve uma ferida na panturrilha. Sua mãe o havia protegido com seu corpo ao cair sobre o solo.
Leia a segunda parte:
Atividade mineradora em região de Honduras deixou rastro de doenças, destruição ambiental e desemprego
As organizações ambientalistas da região não tiveram dúvidas de que os responsáveis por esse novo atentado contra a vida daqueles que se opunham à mineração tinha vínculos com a Pacific Rim.
Outro e prata em Cabañas
A Pacific Rim obteve, em 2004, uma licença de exploração e identificou nada menos de 25 locais para a exploração de ouro e prata em sete departamentos de El Salvador, incluindo Cabañas, uma das regiões mais pobres e atrasadas do país. O depósito de dejetos contaminados com cianureto e mercúrio ocuparia uma superfície de 35 hectares, com paredes de 30 metros de altura.
Giorgio Trucchi/Opera Mundi
Diretores dos CAC e ASIC, da localidade salvadorenha de Cabañas, denunciaram mortes e exigiram lei que detenha mineradoras
“Naquele momento não havia nenhum tipo de informação e ninguém se preocupava com a presença de trabalhadores da empresa que andavam por ali, realizando análises do terreno e tirando grandes quantidades de água do rio São Francisco. Tudo mudou quando, em abril de 2004, nosso rio secou”, lembra-se Francisco, que é coordenador-geral do CAC.
Essa situação fez com que os moradores de diferentes comunidades reagissem e buscassem uma forma de se organizar. A empresa respondeu com uma campanha de desinformação dirigida aos governos municipais, líderes comunitários e partidos políticos, para convencê-los das bondades que os 5 projetos de mineração iriam promover em Cabañas.
“Falavam de desenvolvimento, emprego, infraestrutura, reflorestamento e de como iria melhorar a qualidade da água, mas nunca mencionaram nem nos apresentaram os estudos de impacto ambiental”, disse Rhina Navarrete, coordenador -geral da ASIC (Associação Amigos de San Isidro Cabañas).
O contato entre líderes comunitários permitiu que uma delegação viajasse para Honduras e visitasse o Valle de Siria, onde o projeto de exploração da transnacional canadense Goldcorp estava gerando graves impactos socioambientais e sobre a saúde da população.
Leia mais:
América Central se remilitariza para a “guerra contra as drogas” imposta por Washington
Organizações: remilitarização da América Central provocou mais mortes e violência
“Guerra contra as drogas” é um fracasso, diz diretora do Programa das Américas
Escola das Américas traduz política externa dos EUA, diz fundador do SOA Watch
A tomada de consciência sobre o drama que os moradores do Valle de Siria estavam vivendo acelerou o processo de organização e dos protestos contra a mineradora em Cabañas. A formação da Mesa Nacional Contra a Mineração e a crescente mobilização cidadã fizeram com que as autoridades ambientais impedissem a outorga da licença de exploração da mina El Dorado.
NULL
NULL
A reação da Pacific Rim foi imediata. Com o apoio dos meios de comunicação de massa e do grande capital salvadorenho, a transnacional canadense-estadunidense promoveu uma grande campanha midiática para desprestigiar os líderes comunitários e fazer a população acreditar na ideia de que era possível uma “mineração verde”, amigável em relação ao ambiente.
“A briga passou do âmbito local para o nacional. A empresa visitou todas as municipalidades do país para oferecer o financiamento de projetos e comprar vontades. Adquiriu espaços publicitários nos principais meios de comunicação nacionais e favoreceu o engavetamento de um projeto que proibia a mineração no país”, explicou Francisco a Opera Mundi.
O começo da etapa de exploração no cantão Trinidad, em 2008, provocou a morte de várias cabeças de gado e 15 nascentes de água secaram quase imediatamente. Os moradores enraivecidos obrigaram a empresa a tirar suas máquinas da região.
Repressão e morte
Em julho de 2009, frente à onda de protestos e de mobilizações das comunidades e à decisão do então presidente recém-eleito Mauricio Funes de não outorgar nenhuma permissão de exploração para a mineração, a Pacific Rim decidiu se amparar no capítulo de investimentos do CAFTA-DR (Tratado de Livre Comércio entre Estados Unidos, América Central e República Dominicana) e, por meio de uma filial nos Estados Unidos (PacRim Cayman LLC), processou o Estado de El Salvador em 77 milhões de dólares no CIADI (Centro Internacional para a Arbitragem de Disputas sobre Investimentos), entidade sob o guarda-chuva do Banco Mundial.
Anos mais tarde, em 2013, a Pacific Rim abriu falência e foi vendida para a companhia de capital australiano-coreano OceanaGold, que aumentou o processo contra o Estado salvadorenho, solicitando uma compensação de cerca de 315 milhões de dólares por investimentos realizados e perdidos. Quase simultaneamente ao início do primeiro processo, teve início no departamento de Cabañas uma verdadeira caça contra os líderes e dirigentes comunitários.
No dia 18 de junho de 2009, Marcelo Rivera, diretor da AISC , desapareceu. Seu cadáver foi encontrado dez dias depois em um poço com sinais de tortura. No final de julho, o sacerdote Luis Quintanilla, locutor da Rádio Victoria, um dos poucos meios de comunicação que criticavam abertamente o projeto de mineração, sofreu uma tentativa de sequestro e assassinato.
Leia especial sobre situação do campo hondurenho:
Na Honduras pós-golpe, movimentos sociais tentam evitar volta do latifúndio
Camponeses hondurenhos perdem o controle das terras nos anos 1990
Após acordo com governo, hondurenhos querem reforma agrária “integral”
Poucos dias depois, no dia 7 de agosto, Ramiro Rivera Gómez, representante do CAC e líder do cantão Trinidad, foi vítima de uma emboscada ao receber vários disparos pelas costas quando ia ordenhar suas vacas. Sobreviveu ao ataque apenas para sofrer outra emboscada e ser assassinado no dia 20 de dezembro, dois dias antes de testemunhar nos tribunais contra o suposto responsável pelo primeiro assassinato.
No ataque, realizado com armas de grosso calibre, Felicita Echeverría, a quem Rivera Gomez tinha dado carona em seu veículo, também perdeu a vida. Seis dias depois, aconteceu o assassinato brutal de Dora Alicia Sorto e do filho que ela carregava no ventre.
“Foi brutal. O assassinato de Dora e de seu filho teve um impacto sobre a população, que ficou traumatizada e com muito medo. Além disso, as investigações não levaram a nada e, tanto a polícia quanto a promotoria concluiriam que o crime foi por questões pessoais. O assassinato ficou impune”, lamentou Pineda.
No dia 3 de junho de 2001, Juan Francisco Durán Ayala, ativista do CAC, despareceu. Seu corpo foi encontrado 10 dias depois em uma fossa comum em San Salvador. Um dia antes de seu desaparecimento, ele estava colocando faixas, colando cartazes e entregando panfletos na cidade de Ilobasco, exigindo a aprovação de uma lei contra a mineração de metais e a saída da Pacific RIm de Cabañas.
Apesar do medo, as organizações que integram a Mesa Nacional Contra a Mineração se mantiveram firmes e não permitiram que o temor desarticulasse seu trabalho de resistência nas comunidades. Também ampliou-se o processo de alianças com a adesão do Movimento Mesoamericano Contra o Modelo Extrativista Minerador (M4).
O objetivo continua sendo a aprovação de uma lei que proíba a mineração em El Salvador. A recente vitória eleitoral do candidato Salvador Sánchez Cerén, do partido de esquerda FMLN (Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional) e seu posicionamento público contra a mineração de metais despertou novas esperanças.
“Conseguimos penetrar em algumas comunidades que eram muito hostis e que estavam cooptadas pela empresa. Em outras ainda não foi possível e continua existindo divisão. Não é fácil, mas vamos em frente, defendendo nosso território e a vida”, concluiu Rhina Navarrete.