A imagem mais chamativa dos muitos protestos e manifestações que encheram as ruas do México nas últimas semanas é a porta em chamas do Palácio Nacional, na praça da Cidade do México, ao final da marcha noturna de sábado, 8 de novembro. Pouco importa que o fogo tenha durado poucos segundos, já que foi apagado pelos bombeiros; pouco importa se foi um acontecimento insignificante se comparado às mobilizações massivas e pacíficas que quase todos os dias acontecem contra o governo federal pelo massacre de seis pessoas e o desaparecimento de 43 estudantes da escola rural para professores da cidade de Ayotzinapa, que aconteceu no município de Iguala, no Estado de Guerrero, nos últimos dias 26 e 27 de setembro.
Giulia Iacolutti
Protestos vêm sendo realizados em todo o país para pedir que os jovens sejam encontrados
Durante a tarde do último dia 7 de novembro, o procurador-geral da República, Jesús Murillo Karam, deu o anúncio esperado há vários dias. Na versão oficial, os 43 estudantes desaparecidos foram entregues por elementos da polícia municipal de Iguala ao grupo criminoso Guerreiros Unidos, que os mataram, os cortaram em pedaços e os queimaram durante 15 horas, jogarando seus restos em um lixão da localidade de Cocula, a poucos quilômetros de Iguala.
Por esse motivo, segundo o procurador-geral, depois de mais de um mês de investigações, seria impossível afirmar com certeza que esses pedaços de osso e de dentes são o que resta dos 43 jovens desaparecidos. Ainda assim, o responsável pela procuradoria-geral falou sobre uma parcela da investigação em curso que indica que esses restos poderiam ser dos estudantes. Em nenhum momento ele afirmou que os ossos são dos estudantes, apesar da imprensa ter transcrito a notícia como um fato.
A ONG Tlachinollan, que representa os familiares dos 43 estudantes, em um comunicado de 9 de novembro, afirma que as “descobertas informadas pela procuradoria-geral e respaldadas pelo presidente Enrique Peña Nieto carecem de provas científicas e de credibilidade e devem ser avaliadas por peritos argentinos. Os pais de família estariam dispostos a aceitar os resultados se houvessem provas irrefutáveis que até agora não existem. O governo, ao falar sem provas, brinca com a situação dolorosa das famílias dos desaparecidos.”
A afirmação mais contundente do encarregado da procuradoria-geral é que o Executivo não é responsável pelo caso do desaparecimento forçado e da (suposta) execução extrajudicial dos 43 jovens. “Iguala não é o Estado mexicano”, afirmou Murillo Karam, em frente às câmeras, reiterando a isenção de responsabilidade dos integrantes do governo, a não ser pela participação da polícia municipal e da Prefeitura de Iguala, considerados os únicos responsáveis pelo delito, depois da prisão do prefeito de Iguala, José Luis Abarca, e de sua esposa, María de los Ángeles Pineda Villa, na Cidade do México, no dia 4 de novembro.
O general brigadeiro do Exército mexicano, José Francisco Gallardo, ex-preso político e defensor dos direitos humanos, não concorda: “desde que esse detalhe aconteceu, eu disse: ‘O Exército foi o responsável pelos desaparecimentos porque fez uma manobra militar’”.
Giulia Iacolutti
General brigadeiro do Exército mexicano, José Francisco Gallardo: “O Exército foi o responsável pelos desaparecimentos”
O general Gallardo não tem dúvidas porque diz ter testemunhas diretas. “Eu conversei com pessoas no dia seguinte, que estiveram lá, que presenciaram o acontecido. Vieram ao meu escritório e conversaram comigo. Estou certo de que foi o Exército. Porque a polícia mexicana está militarizada. O Exército realizou uma manobra militar. A polícia municipal está envolvida, há civis envolvidos, mas são militarizados. Fazem com que todos os policiais da região façam cursos e os investigam na zona militar de Tlaxcala. O que eles vão fazer em Tlaxcala? Lá há um centro de adestramento. Mas por que os policiais civis são adestrados na zona militar? Porque são militares! É simples assim. Todo esse show, pegar o prefeito, encontrar o único culpado, é para que não se dirija o olhar para o Exército”.
De acordo com Gallardo, a manobra que foi levada a cabo em Iguala é uma tática militar de guerra contra a guerrilha.
Em sua coletiva de imprensa, o procurador-geral Murillo Karam afirmou que o Exército não está de forma alguma relacionado aos acontecimentos de Iguala. “O Exército se move somente com ordens. O que teria acontecido se tivesse se envolvido? Quem teria apoiado? Obviamente a autoridade. Que bom que não apareceu?”
Nas semanas passadas, muitas fontes falaram da participação do Exército por omissão. Sobreviventes da agressão relatam que o Exército não quis intervir para apoiar os estudantes.
Entretanto, o general Gallardo tem outra postura, muito mais inquietante. “Não, de forma alguma, não foi omissão. São cúmplices. Essa é a manobra que realizaram contra mim. Foi assim: os estudantes viajavam de carona. Sim, está errado, mas entraram nos ônibus em direção à cidade de Chilpancingo. A polícia, o Exército e todas as forças de segurança os detiveram e começaram a empurrá-los, em direção a Iguala, pela rodovia. Passaram por uma ponte e, depois da ponte, havia um bloqueio da polícia federal. Ou seja, um bloqueio militar vestido de polícia federal, melhor dito. Passaram por ali, seguiram sendo empurrados, chegaram e foram parados por outro bloqueio que estava na frente do quartel do 27º batalhão de infantaria. E foi ali onde tudo aconteceu.”
Segundo o General Gallardo, trata-se de uma manobra que se chama “bigorna e martelo”, que é usada na guerra de guerrilha. “O que para é a bigorna, o que golpeia é o martelo. Então, os estudantes disseram: ‘ah, ali está o Exército, vão nos ajudar. E não os ajudaram. Foram pedir ajuda nas clínicas, mas também não os ajudaram, não os ajudaram em lugar nenhum. Então, de que se trata? Essa é a questão. Agora, por que as forças de polícia e o Exército agiram assim? Eu digo que é porque pensaram que nada ia acontecer. Um jovem de Ayotzinapa que estava presente veio aqui e me contou: ‘Quando detiveram o caminhão, um dos nossos companheiros desceu para conversar com a polícia para perguntar porque estávamos sendo parados. E, ao discutir com eles, um franco-atirador lhe deu um tiro na cabeça’”.
Giulia Iacolutti
Anúncio de que estudantes estão mortos não fez cessar os protestos no país
Jesús Moisés González, ex-subdelegado do CISEN, o serviço de inteligência mexicano, atualmente é assessor da senadora Layda Sansores. Segundo ele, a responsabilidade do acontecido em Iguala atinge diretamente o presidente da República. “No México não existe um único caminhão que percorra as rodovias federais e estatais sem que o CISEN saiba. Não existe. Se um grupo se move em uma determinada região, o delegado desse Estado, por meio das subdelegações do CISEN, informa a Cidade do México em tempo real dizendo que movimento esse caminhão está fazendo e que trajetória tem, quanta gente está nele e quem o dirige, se traz mantas ou o que mais e a placa do veículo. Esses caminhões são acompanhados desde que partem de um ponto A até chegarem a um ponto B e, ainda, quando cruzam algum outro Estado, o delegado desse Estado, por sua vez, tem de continuar acompanhando-o até onde for. Mais ainda se, como neste caso, for um caminhão tomado. É feito o acompanhamento de veículos e de motocicletas. Não é possível que estava acontecendo o incidente sem que a CISEN tenha sido avisado em tempo real. Além disso, há computadores instalados nos veículos para enviarem tanto imagens como informação por escrito dos veículos por satélite e, em 3 segundos, essas informações chegam às oficinas do CISEN. É assim que se opera. Não existe um caminhão que vá por uma rodovia sem que o CISEN saiba de quem se trata. Não existe. Essa é a criação da fábula.”
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Guerrero é um estado que, historicamente, teve uma repressão brutal. Ironicamente, Iguala é o lugar onde, em 1821, Agustín de Iturbide declarou a independência do México com o Plano de Iguala.
Segundo dados oficiais, Guerrero é o segundo Estado mais pobre da República, apesar de ter enormes recursos naturais, sobretudo minas de ouro, prata, florestas e água. E, para o general Gallardo, assim como para outros analistas, a presença desses recursos é uma das razões de tanta violência e repressão: “A mineradora canadense Torex descobriu uma mina sob o rio Balsas na localidade de Quechultenango, a poucos quilômetros de Chilpancingo”, afirma Gallardo.
De acordo com informações da própria mineradora canadense Torex, publicadas no jornal El Economista no dia 6 de novembro, a empresa vai investir 725 milhões de dólares nos próximos anos e espera que, somente dessa mina, possa tirar 358 mil onças de ouro por ano entre 2017 e 2024, para um total de 2,506 milhões de onças, com um valor de quase 3 bilhões de dólares.
“Mas as pessoas que estão lá não vão deixar”, explica Gallardo. “É assim que os assuntos de Ayotzinapa devem ser lidos. Uma questão de recursos naturais. Mas quem apoia essa política? O presidente da República. Decidir que o Exército continue desempenhando funções de polícia na rua é domínio do fato”. O domínio do fato é a teoria jurídica por meio da qual se entende que, por trás do autor material, o autor intelectual é igualmente responsável, sobretudo em situações hierárquicas, seja por ação ou por omissão.
Nos últimos dias, as estruturas do Estado mexicano fortaleceram a ideia de que, sendo vários irmãos da esposa do prefeito de Iguala membros do grupo Guerreiros Unidos, a responsabilidade direta e intelectual pelo massacre e pelo desparecimento forçado é exclusiva do casal, já denominado pelos meios de comunicação de “o casal imperial.”
Para Jesús Moisés González, isso é impensável. “A responsabilidade recai diretamente sobre o presidente porque, por meio de seu delegado do CISEN, ele deveria abrir uma ficha sobre a família Abarca. As fichas são abertas cotidianamente quando há campanhas eleitorais ou nas pré-campanhas para assumir alguma representação pública. São feitas fichas de cada aspirante. Essas fichas incluem nome, sobrenome, ideologia, a quais grupos pertence, tanto civis quanto sociais, se pertence ao clube esportivo, se a sua esposa come, se toma café da manhã, se almoça, o que fazem seus filhos. O CISEN tinha a informação completa antes de Abarca ocupar um cargo eleito por voto. Por que a procuradoria-geral e os órgãos de inteligência não avisaram? E, se avisaram, porque a autoridade, neste caso o Secretário de Interior, não deu instruções para que essa pessoa fosse detida ou investigada mais a fundo? O assunto recai diretamente sobre o presidente. Porque o secretário de Interior não pode agir se não obedece a ordem do senhor presidente, que tinha a informação prévia de quem era Abarca. Mas agora todos se eximem.”
Os familiares dos estudantes não se conformam com a versão oferecida pela procuradoria-geral e continuam pedindo ajuda internacional, seguindo as medidas cautelares ditadas no dia 3 de outubro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, mecanismo concreto com o qual o próprio Peña Nieto se comprometeu. As três linhas de assistência internacional solicitadas são a busca em vida, a identificação de cadáveres ou de restos ósseos e a investigação política e criminal para esclarecer as ligações entre governantes (de todos os níveis, não apenas municipais) e o crime organizado.
Os familiares dos desaparecidos desempenham uma parte fundamental do processo, dando informações, por meio de seus representantes, sobre as linhas de busca e promovendo a participação da Equipe Argentina de Antropologia Forense. Foi graças a seu esforço que conseguiram que o presidente da República se pronunciasse exigindo a dignificação das escolas rurais e a formação de uma comissão mista para dar andamento às investigações.
Até o momento, nenhum acordo foi cumprido.