“Temos só mais trinta ou quarenta anos”, prevê a bióloga Patrícia Majluf, diretora do Centro para a Sustentabilidade Ambiental da Universidade Gayetano Heredia, em Lima, e vice-ministra da Pesca do Peru no início do governo Ollanta Humala. Uma das maiores autoridades em vida marinha do país, Patrícia se refere à disponibilidade de peixes na costa peruana, potência pesqueira que sediou até o final de semana passado a 20ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-20).
A cúpula é a penúltima oportunidade para que as grandes economias mundiais – sobretudo Estados Unidos, União Europeia, Japão e Brics – cheguem a um acordo efetivo para reduzir as emissões de gases causadores do efeito estufa. As negociações não poderão ir além da COP-21, que ocorrerá em Paris no ano que vem. É a data limite estabelecida pela ONU para que se construa um novo Protocolo de Kyoto, que passará a vigorar em 2020. Caso nada – ou pouco – seja feito, a bióloga não gagueja ao enumerar uma consequência: “Ficaremos sem ceviche.”
As previsões sobre o “fim” do prato mais famoso da mundialmente reconhecida culinária do Peru podem ser vistas como um alarmismo ambiental. Afinal, os peixes, ingredientes centrais desse prato, em que são marinados com limão ou outra fruta cítrica, podem ser criados em tanques. Isso já acontece com várias espécies consumidas nas cevicherias peruanas, mas não se aplica aos exemplares marinhos, mais nobres, e que dependem unicamente da boa saúde dos oceanos.
Manuel González Olaechea y Franco/Wikimedia Commons
Prato típico peruano, ceviche é feito normalmente com peixe marinado em frutas cítricas, geralmente limão
O Painel Intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (IPCC) atestou em seu último relatório, divulgado em novembro, que a temperatura dos mares, assim como da superfície terrestre, subirá pelo menos 2ºC até 2100 devido às emissões de CO2 e outras substâncias oriundas da queima de combustíveis fósseis. Com o aumento da evaporação, os oceanos também ficarão mais salgados. Além disso, os cientistas lembram que parte considerável da imensa quantidade de carbono lançada à atmosfera tem sido absorvida pelos ecossistemas marítimos, causando um processo de acidificação das águas que prejudica os ciclos naturais de uma série de espécies.
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“As atividades pesqueiras correm grande risco”, continua Patrícia Majluf. “O aquecimento dos mares, que já está em curso, fará com que as espécies migrem em busca de águas mais frias. Lugares que hoje gozam de uma abundância de peixes, como a costa peruana, podem se mover para o Chile, por exemplo.” Sobre a acidificação, a bióloga explica tratar-se de um processo que reduz a fixação de cálcio no ambiente marinho. “Uma série de moluscos e outros animais com grande valor comercial, como mariscos e lagostas, precisam de cálcio para formar suas conchas e cascas.”
20 kg per capita
Todos os dias, milhões de peruanos – e os turistas que cada vez mais chegam ao país atrás de da gastronomia – matam a fome com peixe. Em 2013, consumiram-se 560 mil toneladas, segundo a Sociedade Nacional da Pesca. Isso dá mais de 20 quilos per capita, enquanto o consumo anual brasileiro é de aproximadamente 14 quilos por pessoa. De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a pesca industrial é responsável por 30 mil postos de trabalho diretos no Peru. As formas artesanais de pescaria ocupam pelo menos 65 mil pessoas. Há ainda outros 19 mil empregos no processamento do pescado.
“Temos a maior pesca do mundo e usamos grande parte da produção para dar de comer aos animais”, critica a pesquisadora, lembrando que o país é um dos maiores exportadores de farinha de peixe para fabricação de rações. Devido a essa vocação, a espécie mais aprisionada pelas redes peruanas é a anchoveta, um peixe parecido com sardinha. Sua captura é determinante nos números expressivos da pesca nacional, que tira do mar 6 milhões de toneladas de anchoveta todos os anos. O país é o segundo maior pesqueiro do mundo, atrás da China, cujo litoral é muito mais extenso.
Reprodução/YouTube
Patrícia Majluf: Peru ficará sem ceviche se nada for feito
A grande produtividade do mar peruano se deve a uma particular combinação de fatores naturais que acabam provocando um fenômeno oceanográfico conhecido como “sistema de afloramento”: uma mescla de correntes frias e quentes que se encontram na costa peruana e que, com a ajuda do clima desértico do litoral, interagem com os ventos que sopram da cordilheira dos Andes. “Esse movimento traz para a superfície as águas do fundo do mar. Isso provoca uma recirculação de nutrientes que estavam em áreas muito profundas e que já não seriam aproveitados”, explica a ex-vice-ministra de Pesca, lembrando que o afloramento não será afetado pela mudança climática. “Mas, com águas mais quentes, a disponibilidade de nutrientes será menor. E haverá menos peixes.”
A redução dos recursos pesqueiros no Peru já é uma realidade, ainda não tanto pelo aquecimento global, mas devido a outras ações humanas. “Os impactos das mudanças climáticas devem se intensificar daqui a alguns anos, mas a pesca predatória, a destruição de habitats e a contaminação dos mares já estão afetando a atividade”, contabiliza a pesquisadora, revelando os motivos que fizeram com que durasse apenas “dois meses e quatro dias” no Ministério da Pesca do Peru. “Não aceitam que uma pessoa com interesses preservacionistas assuma o cargo. Parece que não se dão conta de que a pesca depende do meio ambiente.”
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Os alertas científicos chegaram rapidamente às badaladas cozinhas de Lima. E por um motivo que Patrícia Majluf – que não é chef, mas valoriza a boa comida – conhece muito bem: “Nossa gastronomia é muito dependente da pesca. Temos mais de 20 mil cevicherias apenas em Lima. No Peru, há mais garçons trabalhando em restaurantes de peixe do que pescadores.” Por isso é que o peso econômico da atividade não pode ser medido apenas pelas centenas de toneladas de animais que são retirados do mar peruano todos os anos. “A cadeia de produção da pesca tem a ver com turismo e cultura. Isso multiplica sua importância no PIB do país.”
Restaurantes
Preocupado não apenas com o bem-estar das finanças nacionais, mas com a possibilidade de seguir ajudando a fazer do Peru um polo de atração gastronômica, o empresário Nguyen Chávez resolveu entrar na onda. “Sou antropólogo de formação, então não estou interessado apenas no negócio”, explica o proprietário do Pescados Capitales, um dos restaurantes mais procurados de Lima. “A mudança climática já está nos afetando. Não temos mais tantos peixes como antes. Algumas espécies que sequer sofreram com poluição ou sobrepesca simplesmente desapareceram.”
Efe
Chávez atende cerca de 250 comensais por dia em seu estabelecimento, que foi construído há 14 anos num dos bairros mais nobres de Lima obedecendo a uma série de preceitos ecologicamente corretos. Durante o dia, por exemplo, se utilizam da abundante luz natural da capital peruana para iluminar os ambientes do restaurante. Fazem uso racional da água, medem a pegada de carbono que produzem e desembolsam cerca de US$ 8.000 por ano para compensá-la com cultivo de mudas e reflorestação no interior do país. Também respeitam os períodos de reprodução dos peixes.
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“No Peru, a gastronomia pode contribuir muito com a preservação do meio ambiente”, avalia o empresário, lembrando que o segredo está em estimular a consciência dos consumidores peruanos. “O cliente é quem mais exige e estimula práticas predatórias.” Chávez explica que nem mesmo os chefs esperavam o “boom da gastronomia” que tomou conta do país. “Fomos todos pegos de surpresa, e agora temos que nos organizar para promover o uso mais racional dos recursos. Por sorte, temos um aliado muito importante nessa empreitada: Gastón Acurio.”
Acurio é a estrela das estrelas da culinária peruana. Nas últimas eleições, seu nome foi aventado como um dos favoritos para concorrer à Presidência do Peru. Não aceitou, apesar de poucos terem dúvidas de seu favoritismo. “O que ele diz sobre alimentação, se cumpre”, reconhece o proprietário de Pescados Capitales. A influência do chef é tanta que, na quarta-feira (10/12), um dos eventos de alto nível da COP-20 colocou Acurio para preparar publicamente um ceviche vegetariano para o secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon. O sul-coreano aprovou a receita.
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O peixe historicamente mais utilizado pelas cevicherias limenhas é o linguado, que, segundo Chávez, tem sofrido com o boom gastronômico. “É o melhor para o ceviche, mas a redução das populações e o aumento da demanda tem jogado os preços à estratosfera”, explica, informando que 80% dos restaurantes que recentemente abriram suas portas em Lima estão orientados à preparação de peixes e mariscos. “Há dez anos, você podia comprar um quilo de filé de linguado por 25 reais. Agora, custa 140 reais. Além de ser bem mais caro, já não é tão fácil encontrá-lo.”
McKay Savage/Wikimedia Commons
Costa em Lima, capital do Peru: aquecimento e acidifcação de oceano pode acabar com nutrientes necessários para sobrevivência de peixes
A alternativa tem sido mudar os ingredientes. Se o linguado está em risco, os chefs têm procurado outros exemplares para alimentar os clientes que vêm à procura de ceviche e outros pratos marinhos. Até porque o consumo exagerado não deixou alternativas. “Algumas espécies não tinham proibições de consumo em período de reprodução, como o polvo, mas agora temos que respeitá-lo. O camarão de rio e a concha negra, que são muito admirados pelo paladar peruano, estão praticamente extintos. Tanto que já nem servimos mais”, revela Chávez.
Em meio à crise ecológica, o empresário também tem se valido de peixes de água doce, como a tilápia, para continuar servindo sem crises de consciência. “O ideal seria que trabalhássemos apenas com espécies de criação”, propõe, sem, no entanto, iludir-se quanto aos problemas que os cativeiros também provocam ao meio ambiente. “Eles têm suas próprias formas de poluir. Há toda uma discussão sobre a qualidade das rações, que são feitas com produtos transgênicos…” E reconhece: “Nada é perfeito. Temos que buscar o mal menor.”