Valery Levchenko e Roma Tarasenko abandonaram sua cidade-natal, Mariupol, no sudeste da Ucrânia, antes de que o conflito chegasse mais perto de casa. Em junho do ano passado, o jovem casal – ela, economista, 22 e ele, jornalista, 24 – deixou pra trás trabalho, amigos e familiares com medo da guerra iminente.
“A gente sempre quis se mudar, sair da nossa zona de conforto, mas nunca pensamos que isso aconteceria nestes circunstâncias”, conta Valery.
O sonho de morar perto do mar levou os dois a escolherem como nova casa a Crimeia, região ucraniana anexada pela Rússia em março do ano passado. Com a guerra cada vez mais próxima da Mariupol natal, os pais de Roma fizeram o mesmo caminho do filho. Em poucos meses, dezenas de milhares de ucranianos passaram a ser refugiados internos, morando em uma região disputada entre a Ucrânia e a Rússia.
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Valery Levchenko e Roma Tarasenko saíram de Mariupol para fugir do conflito, mas foram surpreendidos pela ocupação na Crimeia
Não há dados oficiais, mas estima-se que pelo menos 50 mil ucranianos do leste do país morem agora na Crimeia. A região continua sendo de jure parte da Ucrânia, mas é controlada de facto pela Rússia. Os cidadãos que já residiam na Crimeia tiveram a opção de obter um passaporte russo. Para os ucranianos que vêm de outras regiões do país, como Valery e Roma, só é permitido ficar na Crimeia durante 90 dias. Depois deste período, eles precisam sair da península e voltar a entrar, para renovar o “visto”.
“É uma situação muito estranha e injusta. Somos imigrantes no nosso próprio país. Da noite pro dia, não podemos mais morar aqui. Só podemos ficar os três meses permitidos pelo país que ocupou nosso território”, critica Roma.
“A cada 90 dias, temos que cruzar a ‘fronteira’ (ele faz sinal de aspas no ar) e renovar nossa autorização de permanência na ‘Rússia’ (ele repete as aspas no ar). São 1 mil rublos (R$ 60), só de ida, que gastamos sem necessidade”, explica.
Apesar das dificuldades, os dois jovens se consideram sortudos. Não pagam aluguel porque fazem serviços para a proprietária da casa em troca de acomodação. “A dona da casa viaja muito. Ela já é uma senhora… Eu organizo as fotos das viagens dela, faço álbuns e slides no computador. Como ela mora perto da gente, quando ela tem algum problema em casa, eu vou lá e tento resolver o problema. E minha esposa limpa a casa dela, lava e passa as roupas”, detalha Roma.
Resignação
Na casa vizinha à do jovem casal, o otimismo inicial deu lugar à resignação. “Queríamos uma vida melhor. Fugimos da guerra, mas chegamos aqui e encontramos muitos problemas. Os produtos nos supermercados são muito caros porque agora é tudo em rublo [moeda russa], não podemos trabalhar legalmente e temos que pagar aluguel. Em Mariupol [cidade ucraniana], tínhamos nossa casa própria, pelo menos”, relata a dona-de-casa Oksana Nesterenko, que cuida dos dois filhos pequenos enquanto o marido trabalha vendendo chips de celular na rua.
Nadya Savchuk, outra vizinha que também veio de Mariupol, acha que a tranquilidade na Crimeia compensa qualquer problema. “A vida aqui não é fácil. Começar quase do zero não é fácil. Mas é melhor do que ter que ouvir bombardeios todos os dias. Estávamos vivendo no meio da guerra, no meio de um pesadelo.”
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Agência Efe
Partidários da anexação comemoraram em Simferopol, em março de 2014, referendo com resultado pró-Rússia
Um decreto aprovado em julho do ano passado na Rússia diminuiu o processo burocrático para os ucranianos que buscam refúgio no país. No entanto, a lei não se estende à Crimeia. Para trabalhar legalmente na península anexada, cidadãos ucranianos precisam obter uma autorização de trabalho que pode custar até 20 mil rublos (R$ 1,2 mil), depois de um processo que inclui triagem médica e exames de língua russa. Com a autorização em mãos, um ucraniano tem permissão de trabalho, mas passa a ter que pagar até 2,5 mil rublos (R$ 148) por mês em impostos fixos. O salario médio na Crimeia, segundo o Ministério de Finanças da região, é de 17,7 mil rublos (R$ 1 mil).
Muitos spas e hotéis da Crimeia ofereceram seus quartos para abrigar, durante a baixa temporada, os refugiados ucranianos. Mas o mês de abril inaugurou o início da temporada turística e centenas de pessoas ficaram sem teto.
“Eu estou dormindo no carro de um amigo por enquanto. Há um centro de refugiados na cidade de Alushta, mas eu prefiro dormir aqui. Eu entendo que eles fazem um bom trabalho (no centro de refugiados), mas eu me sentiria muito mal dormindo lá. Será a minha última opção”, conta Ivan Moroz, mecânico, que se mudou há dois meses para a Crimeia.
Refúgio também para a elite
A Crimeia foi o refúgio escolhido também por muitas pessoas de classe média e alta do leste da Ucrânia.
As ruas de Ialta, Sevastopol e Simferopol, três das maiores cidades da Crimeia, estão cheias de carros com placas de Donetsk e Lugansk. Antes do conflito, o leste da Ucrânia tinha uma economia pujante e Donetsk chegou a ser a cidade mais rica de todo o país.
Mariane Roccelo/Opera Mundi
“Muita gente enriqueceu nos últimos 10 anos no leste da Ucrânia. Eles tinham uma vida de ostentação, com carros de luxo e roupas de marca”, conta o advogado Igor Zelenov, nascido em Donetsk. “Com o conflito, muitos escaparam pra cá. Agora, estão desfilando suas riquezas pelas ruas das cidades da Crimeia. Mas aqui a vida é mais simples”.
O amigo Boris Kravchenko, corretor de imóveis também de Donetsk, concorda com Igor. “Se você vir um carro muito chique estacionado na praia, há grandes chances de que a placa seja de Donetsk. Os ricos do leste da Ucrânia foram os primeiros a sair da região, quando estourou a guerra. Muitos deles já tinham imóveis aqui”.
A incerteza é compartilhada pelos refugiados pobres e ricos. Katya Pavlenko era dona de uma concessionária de carros em Donetsk e agora não sabe quando poderá voltar para casa. “Abandonamos a nossa casa achando que voltaríamos em um ou dois meses, mas agora eu acho que não sairemos daqui tão cedo”, lamenta.