Em Portugal, gestores de falências ganham até 100 mil euros com boom de leilões pós-crise
'Administradores de insolvência' têm comissões por penhora de bens; falências, que subiram 200% desde 2008, rendem negócios abaixo de preço de mercado
Nuno da Silva [nome fictício] está desempregado há quase dois anos. Tempo suficiente para que as dívidas saíssem do controle: ao banco, deve a hipoteca do apartamento de dois quartos onde vive com a família e o empréstimo que usou para as reformas da casa; ao Estado, deve o imposto municipal sobre o imóvel. Incapaz de pagar as contas, ele entrará tecnicamente em falência. “Não temos para onde ir”, desabafa. Acossado pelos telefonemas diários dos credores, já vislumbra o possível desfecho da história: a penhora.
Desde 2008, ano em que disparou a crise econômica em Portugal, aumentou em 200% o número de pessoas e empresas falidas. Como diz o ditado, a desgraça de uns faz a felicidade de outros: a deterioração financeira de parte da população também marca o auge do lucrativo fenômeno dos leilões. Quando pela porta da casa de Nuno entrarem os encarregados de executar a decisão judicial da penhora, o caminho dos móveis, louça, televisão, geladeira, fogão, tapetes e da própria casa será um leilão.
Marana Borges/ Opera Mundi
Uma das 50 casas que vão a leilão em Portugal
A rede das hastas é extensa e envolve imobiliárias, avaliadores, bancos, advogados e administradores. Para muitos, é uma oportunidade de fazer bons negócios. Nessa teia, os juízes têm gradativamente menos voz, muitas vezes limitando-se a cumprir decisões tomadas no Ministério das Finanças.
Uma vez declarada a falência na sentença judicial, entram em cena os chamados “administradores de insolvência”, responsáveis por auxiliar processos junto ao Tribunal do Comércio, corte em que tramitam as falências. Apesar de a maioria das falências não implicar bens, as falências de pessoas com casas e de grandes empresas — especialmente construtoras — costuma render boas fatias aos administradores. Eles podem chegar a ganhar de 50 mil a 100 mil euros por um processo de alta complexidade. Tudo dentro da legalidade.
No pregão, quem trata da venda costuma ficar com 10% do preço final dos bens móveis e 5% dos imóveis. As falências também são vantajosas para quem compra, pois os bens vão a leilão por cerca de 25% do valor de mercado. Para participar dessas licitações é necessário pagar fiança de vários milhares de euros.
Endividados
Parte significativa das pessoas com bens penhorados está sobre-endividada, isto é, possui três ou mais contratos de crédito. Natália Nunes, coordenadora do Gabinete de Apoio ao Endividado da DECO, a principal associação portuguesa de proteção ao consumidor, responsabiliza o sistema bancário e o governo. “Além do apoio do Estado para o crédito a famílias jovens, houve grande aliciamento dos consumidores por parte dos bancos”, afirma.
Pela primeira vez desde 2000, a principal causa do endividamento excessivo não é o desemprego, mas os cortes nos salários e aposentadorias. Muitas pessoas não conseguem sequer pagar contas de luz, água, condomínio e até mesmo dívidas a farmácias. No limite, qualquer dessas dívidas pode resultar em penhora.
Wikicommons
Protesto em Portugal contra austeridade aplicada pelo governo
Para abreviar o sofrimento, é comum os próprios devedores de hipotecas optarem por entregar a casa diretamente ao banco. Mas esta solução esconde armadilhas. É preciso submeter extensa (e cara) documentação ao banco, que fixará o valor (pouco generoso) do imóvel. Fechado o acordo e devolvida a casa, o pesadelo continua. É o que conta Marcela Jardim [nome fictício], de 40 anos. Ela entrou em falência após o divórcio e a perda do emprego. Devolveu o apartamento ao banco pela metade do que o comprou, e ainda lhe resta pagar 30 mil euros. A ajuda de familiares e amigos não basta. “É desesperador”, diz.
Mas dever ao Estado é tão perigoso quanto a bancos. As dívidas fiscais e à Segurança Social nunca prescrevem. Sobretudo desde 2012, os mecanismos do Ministério das Finanças para penhorar bens vêm sendo informatizados e acelerados. Perante os computadores, dever 1.000 euros ou 1 milhão não faz diferença. Por isso a recente notícia de que o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho esteve desde 1999 sem saldar uma dívida que tinha com as Finanças — e jamais foi punido — indignou os ânimos da população.