Moradora da cidade de Manchester, a brasileira Luciana Spazzini, 42 anos, dá duro todos os dias para garantir a vida dela e de sua única filha. Há sete anos na Inglaterra, ela tentou primeiro viver na Itália, terra de onde vêm seus antepassados e de onde herdou a cidadania, documento que lhe abriu as portas do continente europeu sem a necessidade de vistos.
No país mediterrâneo, porém, as coisas não correram muito bem e ela resolveu juntar as malas novamente e se mudar. O destino foi a cidade de Manchester, onde chegou sem muita coisa, para trabalhar em um restaurante brasileiro. Sete anos depois e com a vida organizada, Luciana tem no Reino Unido seu novo lar: Sente-se integrada à cidade onde mora, gosta do atual emprego no banco, tem a filha na universidade e sonha em comprar a casa onde mora.
Agência Efe
Reeleição de David Cameron tornou certa a realização de referendo para decidir permanência na União Europeia
Tudo estaria muito bem, não fosse por um tema que começou a rondar a vida de Luciana nos últimos meses e que a tem deixado preocupada: a possibilidade do chamado Brexit, a saída do Reino Unido do bloco europeu, assunto que será votado em um referendo no próximo ano.
Afinal, é a sua cidadania italiana que lhe garante o direito de viver no Reino Unido sem se preocupar com papeis. Isso significa que novas regras para os cerca de 2,7 milhões de europeus residentes no país poderão impactar diretamente na vida da brasileira. “Por isso decidi pedir o documento da residência permanente. É melhor prevenir que remediar”, diz Luciana.
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Corrida contra o tempo
O documento citado por Luciana, atualmente, é opcional para os cidadãos de outros países europeus moradores do Reino Unido. Pode ser requisitado após cinco anos de residência em solo britânico e custa £ 65 (R$ 373).
Sai bem mais barato que a outra via para se garantir o direito de permanecer no país: a naturalização, que custa mais de £ 1.000 (R$ 5.750) por pessoa e envolve a realização de uma prova na qual o candidato precisa acertar pelo menos 75% das questões de conhecimentos gerais sobre o Reino Unido.
“Estão falando demais sobre esse assunto. Vai que [o Reino Unido] sai mesmo?”, comenta Luciana. Ela não está sozinha. À medida que se aproxima o referendo, que deve ser realizado em junho de 2016, e o tema do Brexit ganha fôlego, mais e mais gente tem decidido agir preventivamente.
Em agosto, uma enquete do jornal britânico The Guardian convocando europeus para comentar sobre o assunto recebeu mais de 1.200 respostas, a maior parte delas de gente já em processo de naturalização ou pensando em iniciá-lo – o que era um cenário bem pouco provável anos atrás. Como mostra o último censo, de 2011, apenas um a cada cinco europeus continentais residentes no Reino Unido à época tinha o passaporte britânico.
“Não acredito que o Brexit se torne realidade, mas o pânico das pessoas em relação a ele é real”, conta Ajay Kapoor, um dos consultores do escritório de advocacia especializado em migração Edmans & Co, sediado em Londres.
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Kapoor conta que, desde a reeleição de David Cameron, em maio deste ano, fato que confirmou a realização do referendo sobre a permanência na União Europeia, dispararam as ligações de europeus nascidos em outros países perguntando o que fazer para não serem pegos de surpresa por novas regras que podem ser criadas nos próximos anos.
“Eles querem saber como ter a residência permanente ou como aplicar para a naturalização porque eles estão com medo do que pode acontecer no futuro”, diz o consultor.
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A “origem de todos os males”
Não é difícil entender porque tanta gente tem, subitamente, se preocupado com o assunto. É raro um dia em que os jornais britânicos não estampem em suas páginas notícias negativas relacionadas à migração. Seja sobre os campos de refugiados na cidade francesa de Calais, seja sobre especulações de que europeus de outros países estejam “roubando” o emprego dos britânicos ou pesando sobre o sistema público de saúde.
Por isso não é de se espantar que em agosto, no último levantamento realizado pelo instituto de pesquisa Ipsos Mori, imigração tenha aparecido como o principal problema enfrentado pelo país na opinião dos entrevistados, apontado por metade deles. O tema foi considerado mais importante que o sistema de saúde (37%), a economia (27%), a pobreza (17%), o desemprego (17%) ou a educação (17%).
Não importa se os imigrantes e refugiados o são por razões humanitárias, vindo de países como a Síria, ou se são espanhóis, portugueses, italianos ou poloneses atraídos pela demanda do mercado de trabalho local. A solução proposta pelo governo de David Cameron esbarra sempre em uma mesma resposta: renegociar o pacto atual com a União Europeia e controlar a entrada de imigrantes.
Para Cameron e o Partido Conservador, até mesmo os refugiados em Calais são culpa do bloco europeu, que não controla suas fronteiras, permitindo que os refugiados que chegam à Itália ou à Grécia atravessem o continente até esbarrar no túnel que liga a França ao Reino Unido – onde têm sido constantemente recebidos com violência e total desdém por parte do governo britânico.
O tiro pela culatra
Paradoxalmente, porém, quanto mais o governo engrossa a voz contra a imigração, maior o número de pessoas que cruza a fronteira: estatísticas oficiais mostram que a taxa líquida de migração (calculada pela diferença entre o número de pessoas que chega e sai do país) para o Reino Unido nunca esteve tão alta.
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Entre abril de 2014 e março de 2015, o país ganhou 330.000 novos habitantes, número 40% superior ao do ano anterior. Considerando-se apenas cidadãos europeus, o crescimento em relação à última tomada de dados é de 41%, percentual levemente superior ao número geral.
“O governo já restringiu substancialmente a imigração internacional vinda de fora da União Europeia por meio do sistema baseado por pontos. Agora eles estão voltando a atenção para a imigração vinda dos países da UE, que aumentou desde o início da crise econômica”, diz Aline Doussin, da firma de direito internacional Squire Patton Boggs. Por isso, com ou sem Brexit, novidades são esperadas.
Soluções caseiras
Enquanto a rodada de negociações com a UE não se inicia, o governo fará o que pode internamente. O Home Office, órgão responsável por analisar os pedidos de visto e residência no país, tornou-se famoso nos últimos anos por constantemente mudar as exigências para a permanência em solo britânico.
Enquanto não há como impedir os cidadãos do bloco europeu de viver no Reino Unido, o órgão tem se esforçado para complicar a vida de quem tem outras nacionalidades. Em fevereiro deste ano, por exemplo, de um dia para o outro, alterou-se o formulário usado por familiares não europeus de cidadãos da UE para fazer o processo de residência no Reino Unido. De 40 páginas, passou-se para mais de 120, acompanhadas por uma lista ainda maior de documentos a ser enviada para a análise do Home Office.
É este comportamento que tem deixado os europeus continentais apavorados. Com a União Europeia sendo um dos alvos prediletos de David Cameron, parece ser uma questão de tempo até que o gabinete do primeiro ministro possa, finalmente, alterar as regras do jogo. Mais burocracia e taxas mais altas são o mínimo que se pode esperar dentro desse cenário.
“Estou preocupado com o futuro”, conta o historiador espanhol Rafael Linde, de 39 anos. Casado com uma britânica, Rafael veio para o Reino Unido em julho de 2012. De lá pra cá, tem percebido um acirramento de ânimos cada vez maior, que o faz temer por efeitos bem mais graves que o aumento da burocracia.
“Como estrangeiro, a presença de partidos políticos como o Ukip [nacionalista] e o discurso anti-imigração na TV e nos jornais preocupam bastante. Como historiador, temo que essa situação acabe se aproximando daquela da Europa dos anos 30. Surpreende-me ver pessoas de idade, que seguramente lutaram durante a Segunda Guerra Mundial, queixando-se de estrangeiros, seja de qual país for”, diz.