O nome dele é Sabino Abdala, mas, até os 17 anos, se chamava Federico Gabriel Wojtowicz. Com um sorriso, ele precisa que também pode ser identificado como “o número 48”. Sabio é o 48 neto recuperado pelas “Abuelas de la Plaza de Mayo”, as “Avós da Praça de Maio” . Elas lutam desde 1977 para encontrar os rastos das crianças sequestradas durante a ditadura militar (1976-1983) e ilegalmente adotadas por famílias próximas do governo.
Os pais delas, jovens ativistas de esquerda, estão entre as 30 mil pessoas desaparecidas durante a ditadura. Nos centros de tortura, as mulheres grávidas tinham direito a uma sala especial até o nascimento dos bebês, os quais amamentavam durante quinze dias. Depois disso, os filhos eram removidos, para serem “apropriados”, de acordo com o vocabulário das organizações de direitos humanos, por outras famílias.
A “apropriação” também aconteceu com crianças pequenas, abduzidas junto com seus pais. Este foi o caso Sabino, no dia 16 de março de 1977. Ele tinha dois anos e oito meses quando um grupo de policiais invadiu um pequeno apartamento em La Plata, a cerca de 100 km de Buenos Aires, para prender o casal Susana Falabella e José Abdala. Sabino não se lembra de nada. Além dele, os militares levaram Maria Eugenia Gatica, filha de um casal de amigos militantes. Ela tinha então, 14 meses. As crianças foram logo então separadas, adotadas cada uma por uma família.
Fotos: Lamia Oualalou/Opera Mundi
Sabino Abdala foi uma das crianças retiradas dos pais durante a ditadura militar
Em 1985, dois anos após a restauração da democracia, Maria Eugenia foi encontrada, tornando-se a criança recuperada número 28. Mas Sabino teve que esperar até 1993 para ser descoberto. As Avós nunca pararam a busca. Em setembro passado, elas encontraram a número 117, uma mulher agora com 40 anos. A sensação de urgência é crescente: as avós são velhas. Com a morte delas, afasta-se a chance de encontrar as outras 400 crianças sequestradas.
“Sabe, é difícil construir uma nova identidade, não dá para se reprogramar de um dia para outro”, confia Sabino, tamborilando os dedos na mesa de um café. Quando criança, ele se perguntou várias vezes por que tinha o cabelo marrom numa família de loiros. “Quando fiz dez anos, comecei a fazer perguntas; minha família me disse, então, que meus pais genéticos tinham morrido em um acidente de carro. Ainda não consigo perdoar a sucessão de mentiras.”
É graças ao Banco Nacional de DNA, estabelecido pelas “Abuelas”, que Sabino finalmente conheceu a sua verdadeira historia em 1993. No entanto, ele demorou mais quatro anos para mudar o nome. “Foi difícil, tinha um vergonha, a tragédia das crianças sequestradas não era conhecida. Agora, tudo mudou, com o apoio do governo, podemos assumir nossa historia e começar a reconstruir uma vida”, explica.
Política de Estado
Transformar a questão dos direitos humanos em uma política de Estado é, provavelmente, a herança mais indiscutível dos anos Kirchner. Um dia depois de sua posse, em 25 de maio de 2003, Nestor Kirchner lançou uma bomba: aposentou mais de metade dos generais e almirantes das forças armadas. O alto comando militar nunca tinha conhecido tal expurgo desde a restauração da democracia, em 1983. “Os militares devem ter compromissos com o futuro, não o passado”, declara então o presidente.
Prédio da Esma: antes local de tortura e, hoje, ponto de encontro cultural e de memória
Dois meses depois, a Argentina adere à convenção internacional tornando imprescritíveis os crimes de guerra e contra a humanidade, um projeto de lei esquecido nas gavetas do governo desde 1995. Dez dias depois, o Congresso e o Senado cancelam as leis de anistia aprovadas em 1986 e 1987. Em 2005, o Supremo Tribunal valida o cancelamento e declara inconstitucional a anistia à hierarquia militar, abrindo a porta para centenas de ações judiciais contra ex-torturadores. É na cadeia que o ex-ditador Jorge Videla morreu em maio de 2013. No ano anterior, a Justiça havia admitido a responsabilidade dele no sequestro de crianças como Sabino, um crime sem precedentes na história das ditaduras.
Em 24 de março de 2004, data do 28º aniversário do golpe militar, Kirchner ainda marca os espíritos tirando dos militares um terreno de 17 hectares em Belgrano, um bairro de classe média na capital argentina. Era o local da ESMA, a Escola de Mecânica da Armada, o principal centro de detenção e tortura da ditadura argentina. Entre 1976 e 1983, mais de 5.000 pessoas foram levadas ao local, de olhos vendados. Eles chegavam geralmente presos em uma Ford Falcon verde, o carro do “Grupo 3.3.2” responsável pelo sequestro de ativistas de esquerda.
Dez anos mais tarde, a Esma se transformou em um gigantesco centro de memória. Cada um dos seus edifícios foi confiado à responsabilidade de uma organização de direitos humanos. O local do “Cassino”, onde se torturava, é o mais impressionante. Hoje, dá para visitar as salas onde os presos ficavam algemados e encapuzados. O local ganhou o nome de “capucha” (capuz), enquanto “la capucheta” (o capuzinho) concentrava os detentos especiais.
NULL
NULL
Após dias de interrogatório e tortura, a maioria dos militantes eram levados à enfermaria do Cassino, onde recebiam uma injeção para adormecer, antes de serem levados ao aeroporto. Eram então colocadas em aeronaves e helicópteros e jogadas, ainda vivas, no Rio da Prata, ação conhecida como “voos da morte”. Os corpos nunca foram encontrados. “Essa é a parte mais difícil, nem sequer ter sepulturas”, conta Sabino. Ele se consola com as fotografias dos pais que os avôs dele tinham guardadas. “Mas tinha poucas, e, o mais triste, nenhuma comigo”, acrescenta.
Hoje cineasta, Sabino fez da Esma um centro de referência na vida dele. É aqui que ele encontra amigos para tomar um café ou atende jornalistas curiosos da história dele. Apesar do passado, a descoberta é prazerosa, já que o museu gigante, um labirinto de ruas arborizadas, é cheio de vida. As fotos dos ativistas sequestrados são geralmente alegres, mais uma celebração da luta deles do que um lamento pela perda. O centro cultural Haroldo Conti, em homenagem a um poeta morto pela junta militar, propôs diariamente exposições de arte, peças de teatro e exibições de filmes, tudo de graça. “Isso faz que mesmo os moradores do bairro, bem conservadores em maioria, comecem a vir aqui para desfrutar dos eventos culturais”, comemora Noemi Ciollaro, que edita a revista eletrônica do centro “Haroldo”, especializada em direitos humanos.
Torturados e mortos na Esma são lembrados com placas explicativas sobre quem foram
Para que o horror nunca se repita
“Aqui, lembramos aos jovens o passado, para que o horror nunca se repita, mas também trabalhamos sobre o presente, militando contra a violência policial e nas prisões, e contra a exclusão de maneira geral”, continua a jornalista. O tom ameno impressiona, já que Naomi foi atingida pessoalmente pela ditadura. O companheiro dela, Eduardo, foi sequestrado sob seus olhos, e levado em um Ford Falcon. Os dois filhos deles tinham então três anos e meio e dois meses.
Noemi nos leva ao prédio das Colunas, o mais imponente da antiga Esma. Naquele momento, terapeutas executam danças com jovens com deficiências mentais, alguns em cadeiras de rodas. “Você vê, é outra forma de lutar pelos direitos humanos, isso tem que continuar, é por isso que o candidato de Cristina deve ganhar a eleição”, acrescenta.
Numa década, os militantes dos direitos humanos passaram a ser os adeptos mais fervorosos dos K, como são chamados na Argentina os Kirchner. Além dos avanços legais e de símbolos tais como a recuperação da ESMA, as organizações se beneficiaram de um apoio considerável por parte do Estado, inclusive financeiro. “O governo conseguiu estabelecer uma cooptação muito forte, até agora. Todos os movimentos de direitos humanos eram muito independentes do poder, já não é mais o caso”, lamenta Pablo Stefanoni, o editor da revista Nueva Sociedad.
Esma abriga, hoje, centro cultural que atrai até moradores mais conservadores da região
A aliança é tal que estas organizações são as primeiras a se mobilizar na campanha de Daniel Scioli, o candidato escolhido por Cristina Kirchner. No entanto, ele nunca demonstrou grande interesse na questão dos direitos humanos. O governador da província de Buenos Aires chegou a declarar nos anos 1990, que a ação da junta militar tinha sido um “mal necessário”. A reviravolta de Hebe de Bonafini, líder de uma das duas organizações que representam as mães dos desaparecidos, é eloquente. “Nós não mudamos nossa opinião sobre Scioli, mas temos confiança em Cristina, ela é o verdadeiro líder deste projeto; ela nunca nos abandonou”, declarou a militante.
Na verdade, a mudança de tom dela ficou quase despercebida. Na Argentina, ninguém sabe quais serão as escolhas políticas e econômicas do próximo presidente, seja ele quem for. A questão dos direitos humanos, porém, já parece como uma realização incontestável, sem possibilidade de marcha atrás.