Com muito pouco você
apoia a mídia independente
Opera Mundi
Opera Mundi APOIE
  • Política e Economia
  • Diplomacia
  • Análise
  • Opinião
  • Coronavírus
  • Vídeos
  • Podcasts
Política e Economia

Em 12 anos de kirchnerismo, direitos humanos viraram política de Estado na Argentina

Encaminhar Enviar por e-mail

"Os militares devem ter compromissos com o futuro, não o passado", afirmou em, 2003, o então presidente Néstor; hoje, organizações se mobilizam em campanha pró-Scioli, candidato de Cristina

Lamia Oualalou

2015-10-24T08:00:00.000Z

Receba nossas notícias e novidades em primeira mão!

O nome dele é Sabino Abdala, mas, até os 17 anos, se chamava Federico Gabriel Wojtowicz. Com um sorriso, ele precisa que também pode ser identificado como “o número 48”. Sabio é o 48 neto recuperado pelas "Abuelas de la Plaza de Mayo", as "Avós da Praça de Maio" . Elas lutam desde 1977 para encontrar os rastos das crianças sequestradas durante a ditadura militar (1976-1983) e ilegalmente adotadas por famílias próximas do governo.

Os pais delas, jovens ativistas de esquerda, estão entre as 30 mil pessoas desaparecidas durante a ditadura. Nos centros de tortura, as mulheres grávidas tinham direito a uma sala especial até o nascimento dos bebês, os quais amamentavam durante quinze dias. Depois disso, os filhos eram removidos, para serem "apropriados", de acordo com o vocabulário das organizações de direitos humanos, por outras famílias.

A "apropriação" também aconteceu com crianças pequenas, abduzidas junto com seus pais. Este foi o caso Sabino, no dia 16 de março de 1977. Ele tinha dois anos e oito meses quando um grupo de policiais invadiu um pequeno apartamento em La Plata, a cerca de 100 km de Buenos Aires, para prender o casal Susana Falabella e José Abdala. Sabino não se lembra de nada. Além dele, os militares levaram Maria Eugenia Gatica, filha de um casal de amigos militantes. Ela tinha então, 14 meses. As crianças foram logo então separadas, adotadas cada uma por uma família.

Fotos: Lamia Oualalou/Opera Mundi

Sabino Abdala foi uma das crianças retiradas dos pais durante a ditadura militar

Em 1985, dois anos após a restauração da democracia, Maria Eugenia foi encontrada, tornando-se a criança recuperada número 28. Mas Sabino teve que esperar até 1993 para ser descoberto. As Avós nunca pararam a busca. Em setembro passado, elas encontraram a número 117, uma mulher agora com 40 anos. A sensação de urgência é crescente: as avós são velhas. Com a morte delas, afasta-se a chance de encontrar as outras 400 crianças sequestradas.

"Sabe, é difícil construir uma nova identidade, não dá para se reprogramar de um dia para outro", confia Sabino, tamborilando os dedos na mesa de um café. Quando criança, ele se perguntou várias vezes por que tinha o cabelo marrom numa família de loiros. "Quando fiz dez anos, comecei a fazer perguntas; minha família me disse, então, que meus pais genéticos tinham morrido em um acidente de carro. Ainda não consigo perdoar a sucessão de mentiras."

É graças ao Banco Nacional de DNA, estabelecido pelas “Abuelas”, que Sabino finalmente conheceu a sua verdadeira historia em 1993. No entanto, ele demorou mais quatro anos para mudar o nome. "Foi difícil, tinha um vergonha, a tragédia das crianças sequestradas não era conhecida. Agora, tudo mudou, com o apoio do governo, podemos assumir nossa historia e começar a reconstruir uma vida", explica.

Política de Estado

Transformar a questão dos direitos humanos em uma política de Estado é, provavelmente, a herança mais indiscutível dos anos Kirchner. Um dia depois de sua posse, em 25 de maio de 2003, Nestor Kirchner lançou uma bomba: aposentou mais de metade dos generais e almirantes das forças armadas. O alto comando militar nunca tinha conhecido tal expurgo desde a restauração da democracia, em 1983. "Os militares devem ter compromissos com o futuro, não o passado", declara então o presidente.


Prédio da Esma: antes local de tortura e, hoje, ponto de encontro cultural e de memória

Dois meses depois, a Argentina adere à convenção internacional tornando imprescritíveis os crimes de guerra e contra a humanidade, um projeto de lei esquecido nas gavetas do governo desde 1995. Dez dias depois, o Congresso e o Senado cancelam as leis de anistia aprovadas em 1986 e 1987. Em 2005, o Supremo Tribunal valida o cancelamento e declara inconstitucional a anistia à hierarquia militar, abrindo a porta para centenas de ações judiciais contra ex-torturadores. É na cadeia que o ex-ditador Jorge Videla morreu em maio de 2013. No ano anterior, a Justiça havia admitido a responsabilidade dele no sequestro de crianças como Sabino, um crime sem precedentes na história das ditaduras.

Em 24 de março de 2004, data do 28º aniversário do golpe militar, Kirchner ainda marca os espíritos tirando dos militares um terreno de 17 hectares em Belgrano, um bairro de classe média na capital argentina. Era o local da ESMA, a Escola de Mecânica da Armada, o principal centro de detenção e tortura da ditadura argentina. Entre 1976 e 1983, mais de 5.000 pessoas foram levadas ao local, de olhos vendados. Eles chegavam geralmente presos em uma Ford Falcon verde, o carro do "Grupo 3.3.2" responsável pelo sequestro de ativistas de esquerda.

Dez anos mais tarde, a Esma se transformou em um gigantesco centro de memória. Cada um dos seus edifícios foi confiado à responsabilidade de uma organização de direitos humanos. O local do “Cassino”, onde se torturava, é o mais impressionante. Hoje, dá para visitar as salas onde os presos ficavam algemados e encapuzados. O local ganhou o nome de “capucha” (capuz), enquanto “la capucheta” (o capuzinho) concentrava os detentos especiais.

Após dias de interrogatório e tortura, a maioria dos militantes eram levados à enfermaria do Cassino, onde recebiam uma injeção para adormecer, antes de serem levados ao aeroporto. Eram então colocadas em aeronaves e helicópteros e jogadas, ainda vivas, no Rio da Prata, ação conhecida como “voos da morte”. Os corpos nunca foram encontrados. "Essa é a parte mais difícil, nem sequer ter sepulturas", conta Sabino. Ele se consola com as fotografias dos pais que os avôs dele tinham guardadas. "Mas tinha poucas, e, o mais triste, nenhuma comigo", acrescenta.

Hoje cineasta, Sabino fez da Esma um centro de referência na vida dele. É aqui que ele encontra amigos para tomar um café ou atende jornalistas curiosos da história dele. Apesar do passado, a descoberta é prazerosa, já que o museu gigante, um labirinto de ruas arborizadas, é cheio de vida. As fotos dos ativistas sequestrados são geralmente alegres, mais uma celebração da luta deles do que um lamento pela perda. O centro cultural Haroldo Conti, em homenagem a um poeta morto pela junta militar, propôs diariamente exposições de arte, peças de teatro e exibições de filmes, tudo de graça. "Isso faz que mesmo os moradores do bairro, bem conservadores em maioria, comecem a vir aqui para desfrutar dos eventos culturais", comemora Noemi Ciollaro, que edita a revista eletrônica do centro "Haroldo", especializada em direitos humanos.


Torturados e mortos na Esma são lembrados com placas explicativas sobre quem foram

Para que o horror nunca se repita

"Aqui, lembramos aos jovens o passado, para que o horror nunca se repita, mas também trabalhamos sobre o presente, militando contra a violência policial e nas prisões, e contra a exclusão de maneira geral", continua a jornalista. O tom ameno impressiona, já que Naomi foi atingida pessoalmente pela ditadura. O companheiro dela, Eduardo, foi sequestrado sob seus olhos, e levado em um Ford Falcon. Os dois filhos deles tinham então três anos e meio e dois meses.

Noemi nos leva ao prédio das Colunas, o mais imponente da antiga Esma. Naquele momento, terapeutas executam danças com jovens com deficiências mentais, alguns em cadeiras de rodas. "Você vê, é outra forma de lutar pelos direitos humanos, isso tem que continuar, é por isso que o candidato de Cristina deve ganhar a eleição", acrescenta.

Numa década, os militantes dos direitos humanos passaram a ser os adeptos mais fervorosos dos K, como são chamados na Argentina os Kirchner. Além dos avanços legais e de símbolos tais como a recuperação da ESMA, as organizações se beneficiaram de um apoio considerável por parte do Estado, inclusive financeiro. "O governo conseguiu estabelecer uma cooptação muito forte, até agora. Todos os movimentos de direitos humanos eram muito independentes do poder, já não é mais o caso", lamenta Pablo Stefanoni, o editor da revista Nueva Sociedad.


Esma abriga, hoje, centro cultural que atrai até moradores mais conservadores da região

A aliança é tal que estas organizações são as primeiras a se mobilizar na campanha de Daniel Scioli, o candidato escolhido por Cristina Kirchner. No entanto, ele nunca demonstrou grande interesse na questão dos direitos humanos. O governador da província de Buenos Aires chegou a declarar nos anos 1990, que a ação da junta militar tinha sido um "mal necessário". A reviravolta de Hebe de Bonafini, líder de uma das duas organizações que representam as mães dos desaparecidos, é eloquente. "Nós não mudamos nossa opinião sobre Scioli, mas temos confiança em Cristina, ela é o verdadeiro líder deste projeto; ela nunca nos abandonou", declarou a militante.

Na verdade, a mudança de tom dela ficou quase despercebida. Na Argentina, ninguém sabe quais serão as escolhas políticas e econômicas do próximo presidente, seja ele quem for. A questão dos direitos humanos, porém, já parece como uma realização incontestável, sem possibilidade de marcha atrás.

Você que chegou até aqui e que acredita em uma mídia autônoma e comprometida com a verdade: precisamos da sua contribuição. A informação deve ser livre e acessível para todos, mas produzi-la com qualidade tem um custo, que é bancado essencialmente por nossos assinantes solidários. Escolha a melhor forma de você contribuir com nosso projeto jornalístico, que olha ao mundo a partir da América Latina e do Brasil.

Contra as fake news, o jornalismo de qualidade é a melhor vacina!

Faça uma
assinatura mensal
Faça uma
assinatura anual
Faça uma
contribuição única

Opera Mundi foi criado em 2008. É mais de uma década de cobertura do cenário político internacional, numa perspectiva brasileira e única. Só o apoio dos internautas nos permite sobreviver e expandir o projeto. Obrigado.

Eu apoio Opera Mundi
Análise

Patentes na OMC é uma derrota para os países do Sul Global

Encaminhar Enviar por e-mail

Pandemia de covid-19 reativou a debate sobre a quebra de patentes para medicamentos e vacinas. Apesar de sua união em torno do tema, países subdesenvolvidos sofreram uma derrota

Alessandra Monterastelli

Outras Palavras Outras Palavras

2022-07-06T22:35:00.000Z

Receba nossas notícias e novidades em primeira mão!

No dia 17 de junho, saiu fumaça branca das chaminés da Organização Mundial do Comércio (OMC). A entidade, responsável pela regulação de patentes internacionais, anunciou que chegara a uma conclusão sobre as vacinas contra o coronavírus. Tratava-se do pedido de isenção do acordo TRIPS – sigla em inglês para Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. Firmado na virada do século, tal compromisso obriga os países-membros da OMC a adotar padrões mais rigorosos de proteção patentária. Consequentemente, encarece o acesso às inovações tecnológicas, inclusive no setor farmacêutico. Mas a decisão final foi amplamente criticada por ativistas da saúde e movimentos populares em todo o mundo, já que a OMC rejeitou a isenção total do TRIPS. 

Em 2020, diante da disseminação do novo coronavírus, África do Sul e Índia protocolaram a proposta de isenção do Acordo, que obteve amplo apoio dos países em desenvolvimento e de baixa renda – com exceção do Brasil. A nova decisão foi saudada pelo Secretariado da OMC e por representantes de países ricos como um resultado sem precedentes, mas ativistas condenam que, na prática, a decisão não atende as necessidades mínimas da maior fatia do mundo. “Houve um esvaziamento da proposta pelos países mais ricos. O texto perdeu totalmente sua força, não trouxe nada novo”, explica Felipe Carvalho, Coordenador Regional da Campanha de Acesso do Médicos Sem Fronteiras ao Outra Saúde.

A conclusão do órgão concedeu uma exceção temporária à restrição das quantidades de vacinas que podem ser exportadas sob licença compulsória; diagnósticos e tratamentos não estão incluídos e devem obedecer ao limite de exportação durante o tempo de licença compulsória – decretada durante emergências sanitárias, como é o caso da pandemia. Além disso, a concessão vale apenas para responder à covid-19 e não tem validade diante de outras crises de saúde. O acordo final não inclui o compartilhamento de segredos comerciais e know-how de fabricação, o que prejudicará a produção de vacinas com tecnologia avançada por países de baixa renda – como é o caso dos imunizantes de RNA.

Carvalho conta que o problema é abordado com frequência em reuniões escpecais da OMS e da ONU.  “Existe um consenso entre especialistas e órgãos multilaterais de que as patentes causam constantes crises de acesso e inovação na saúde”. Em maio, o The Guardian divulgou que a Pfizer lucrou 25,7 bilhões de dólares só no início de 2022 – mais da metade do valor está relacionado à venda de vacinas contra a covid-19. Tim Bierley, ativista do Global Justice Now, denunciou ao jornal britânico que apesar do apelo da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outras organizações, a farmacêutica seguia se recusando a compartilhar a tecnologia de produção do imunizante. O diretor da OMS, Tedros Adhanon, afirmou em 2021 que a pandemia estava sendo prolongada por uma “escandalosa desigualdade” diante do acúmulo de doses de imunizantes por países ricos enquanto países pobres não conseguiam avançar em sua meta de vacinação em massa. 

“Desde a criação do acordo TRIPs nós temos um cenário de constantes crises de acesso a medicamentos essenciais”, conta Felipe. Ele relembra o caso emblemático da epidemia de HIV/AIDS, na década de 1990. “Em 1996 surgiu a primeira terapia para a doença. As pessoas pararam de morrer e passaram a conviver com o vírus. Mas essa terapia não chegou nos países onde o cenário era mais grave”, explica. O ano de 1996 foi também quando o acordo TRIPS entrou em vigor, após sua criação em 1994 e preparação em 1995. “A partir daí se criou uma coalizão na sociedade civil, da qual fazemos parte, chamada Movimento de Luta pelo Acesso a Medicamentos. A pergunta era: por que os preços eram tão altos e o tratamento se tornava inacessível para milhões de pessoas? Nos aprofundamos no sistema de patentes e entendemos que o monopólio era a causa”, relembra.

Apesar do TRIPS possuir cláusulas que permitem flexibilizações, elas são de difícil utilização devido a dois fatores principais: sua não-incorporação completa em leis de países-membros e a pressão que as farmacêuticas exercem sobre as decisões da OMC. Na década de 1990, diante da grave situação vivida na África do Sul – país com maior número de mortes pela AIDS na época – o governo então liderado por Nelson Mandela aprovou uma das medidas previstas no TRIPS para importar genéricos. Na ocasião, Mandela sofreu o processo de 39 farmacêuticas que se opuseram à decisão tomada para conter a crise de saúde pública. Apesar da derrota das corporações na justiça, “esse é um exemplo de como essas empresas e seus países-sede tentam barrar as normas legítimas existentes no TRIPS”, exemplifica Carvalho.

A OMC é uma instituição formada por 164 membros e opera com base na tomada de decisões por consenso. “A OMC falhou em fornecer uma isenção. O acordo coloca os lucros à frente das vidas e mostra que o atual regime de propriedade intelectual falha em proteger a saúde e promover a transferência de tecnologia. Essa não-renúncia estabelece um mau precedente para futuras pandemias e continuará a colocar vidas em risco” declarou Lauren Paremoer, médica e integrante do Peoples’ Health Movement na África do Sul. 

A Health Action International, referência no trabalho para expandir o acesso a medicamentos essenciais, argumentou em nota que a decisão da OMC impõe obstáculos ao licenciamento compulsório, uma das poucas flexibilidades existentes no TRIPS, em troca de uma abertura tímida para a facilitação da exportação de vacinas. Outras entidades representantes da sociedade civil já denunciaram a atuação dos países ricos e vêm aumentando a pressão sobre os governos. O objetivo, segundo seus porta-vozes, é que sejam tomadas medidas concretas para desafiar as regras de monopólio farmacêutico da OMC e garantir mais acesso a medicamentos e tecnologias. 

Você que chegou até aqui e que acredita em uma mídia autônoma e comprometida com a verdade: precisamos da sua contribuição. A informação deve ser livre e acessível para todos, mas produzi-la com qualidade tem um custo, que é bancado essencialmente por nossos assinantes solidários. Escolha a melhor forma de você contribuir com nosso projeto jornalístico, que olha ao mundo a partir da América Latina e do Brasil.

Contra as fake news, o jornalismo de qualidade é a melhor vacina!

Faça uma
assinatura mensal
Faça uma
assinatura anual
Faça uma
contribuição única

Opera Mundi foi criado em 2008. É mais de uma década de cobertura do cenário político internacional, numa perspectiva brasileira e única. Só o apoio dos internautas nos permite sobreviver e expandir o projeto. Obrigado.

Eu apoio Opera Mundi
Receba nossas notícias e novidades em primeira mão!
Opera Mundi

Endereço: Avenida Paulista, nº 1842, TORRE NORTE CONJ 155 – 15º andar São Paulo - SP
CNPJ: 07.041.081.0001-17
Telefone: (11) 4118-6591

  • Contato
  • Política e Economia
  • Diplomacia
  • Análise
  • Opinião
  • Coronavírus
  • Vídeos
  • Expediente
  • Política de privacidade
Siga-nos
  • YouTube
  • Facebook
  • Twitter
  • Instagram
  • Google News
  • RSS
Blogs
  • Breno Altman
  • Agora
  • Bidê
  • Blog do Piva
  • Quebrando Muros
Receba nossas publicações
Receba nossas notícias e novidades em primeira mão!

© 2018 ArpaDesign | Todos os direitos reservados