Na noite de domingo (15/11), antes das eleições presidenciais na Argentina, o governista Daniel Scioli, da FpV (Frente para a Vitória), e Mauricio Macri, da coligação Cambiemos (Mudemos) protagonizaram um debate inédito: trata-se da primeira vez na história do país que os argentinos escolherão o próximo mandatário em segundo turno.
Durante uma hora e 15 minutos, os candidatos deveriam falar de suas propostas sobre desenvolvimento econômico e humano, educação e infância, segurança e direitos humanos, bem como sobre o fortalecimento democrático. No entanto, o debate foi marcado pela superficialidade das propostas e maior atenção às formas do que à discussão sobre seus conteúdos programáticos.
Com poucos momentos de discussão política propriamente dita, Macri e Scioli trocaram farpas, eludiram respostas — e por vezes perguntas, preferindo usar o tempo para discursar — e evitaram temas sensíveis, como a violência policial ou mesmo a política de direitos humanos.
EFE
Scioli (à esquerda) e Macri (à direita): debate teve 53% de audiência – similar à final da Copa do Mundo entre Alemanha e Argentina
Kirchnerismo
“No que você se transformou, Daniel? Parece um comentarista do 678 [programa da TV Pública argentina alinhado com o atual governo]”, lançou Macri, em sua primeira provocação explícita a Daniel Scioli. O programa é um dos bastiões kirchneristas da disputa midiática com os meios de comunicação considerados opositores, entre eles o Grupo Clarín.
Enquanto Macri tentou vincular o candidato governista a um dos aspectos do atual governo mais criticados por eleitores de forças opositoras, a confrontação política, Scioli fez questão de dizer – mais de uma vez – que seu oponente não deveria debater com um governo que se despede, mas com um candidato que ainda não chegou à presidência.
Em busca dos indecisos que rejeitam o estilo frontal de Cristina Kirchner, Scioli tentou se afastar do governo kirchnerista.
Apesar da tentativa de distanciamento, o candidato governista reforçou a estratégia que tem sido utilizada por militantes e simpatizantes da atual presidente, de associar Mauricio Macri a políticas de ajuste fiscal e desvalorização do peso. Scioli também relacionou o opositor a medidas de cunho neoliberal e a uma consequente ameaça à indústria nacional argentina.
Por reiteradas vezes, a acusação de Scioli forçou Macri a negar que colocaria esse tipo de medida em prática, caso eleito. O candidato da Cambiemos acusou o governo de Cristina Kirchner de ter sido o que mais desvalorizou a moeda em relação ao dólar no mundo.
EFE/Arquivo
Cristina Kirchner sorri após votar nas primárias, em agosto deste ano
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Direitos humanos
Os julgamentos de militares e a política de reparação a vítimas da última ditadura, carro-chefe da década governada por Cristina e por seu marido, o falecido Néstor Kirchner (2003-2007), ganhou uma menção lateral no bloco dedicado ao fortalecimento democrático.
De fato, foi chamativa a ausência do debate sobre direitos humanos no bloco que deveria tratar o tema, junto a questões de segurança pública. Sobre esse assunto, os candidatos convergiram: falaram sobre combate ao tráfico de drogas, um dos temas que Sergio Massa, candidato derrotado da aliança UNA (Unidos por uma Nova Alternativa) trazia como bandeira. Massa, que em 2008 foi Chefe de Gabinete de Cristina Kirchner, é hoje ferrenho opositor do governo e obteve pouco mais de 21% dos votos no primeiro turno. Seus votantes podem definir a eleição do próximo domingo.
Scioli chegou a utilizar um termo que marcou o discurso de Massa, eleito deputado federal em 2013 pela FR (Frente Renovadora): prometeu acabar com a “porta giratória” da justiça, em referência o direito à redução progressiva da pena de condenados pela justiça, que Massa considera “garantismo” defendido por juízes “solta presos”.
As políticas de “mano dura”, que colocam ênfase na repressão ao crime, mas contemplam pouco sua prevenção, estiveram presentes no discursos de ambos candidatos, ainda que em frases soltas e promessas sem explicações mais profundas. Scioli governa a província de Buenos Aires há oito anos, mesmo tempo de governo de Macri na capital argentina. Pedra no sapato de ambos, a violência policial – perpetrada pela polícia bonaerense, sob comando do candidato da FpV, e pela Polícia Metropolitana, que atua desde 2010 e foi criada pelo próprio Macri – foi um tema eludido.
Venezuela
Grande ausência entre os temas propostos, a política externa virou apenas um comentário de passagem no bloco do fortalecimento democrático. Macri se comprometeu a “suspender a Venezuela do Mercosul por seus abusos contra a democracia”, omitindo que essa não é uma decisão individual de um dos presidentes do bloco.
O candidato do Cambiemos também se comprometeu a revogar o memorando de entendimento com o Irã, que foi intensamente debatido em janeiro, quando o promotor Alberto Nisman apareceu morto no dia em que apresentaria provas de que a presidente Cristina Kirchner havia usado o acordo para negociar a impunidade dos responsáveis pelo atentado à Amia (Associação Mutual Israelita), que matou mais de 80 pessoas em 1994, em troca de acordos comerciais com o país persa.
Scioli lembrou que Macri nomeou o policial Jorge “Fino” Palacios como chefe da Metropolitana. Palacios durou pouco mais de um mês no cargo, quando se viu envolvido em denúncias de acobertamento nas investigações do atentado à AMIA. O ex-policial é réu em julgamento que está em curso para elucidar quem ocultou informação que poderia ajudar a encontrar os culpados do crime.
Repercussão
Com 53% de audiência — similar à final da Copa do Mundo entre Argentina e Alemanha —, o encontro entre Daniel Scioli e Mauricio Macri foi transmitido por todas os canais de TV aberta, e gerou 1 milhão e 800 mil menções com a hashtag #ArgentinaDebate na rede social Twitter.
Segundo diferentes pesquisas de opinião, Macri lidera a disputa pela Casa Rosada com uma vantagem de entre 4% e 10%. A expectativa era de que o debate pudesse ajudar os candidatos a convencer aos cerca de 10% de eleitores que ainda não decidiram seu voto do dia 22 de novembro.