Atualizada em 7.fev.2016
Não tenho mais sonhos como antigamente, com nazistas me pisoteando”, conta Esther Béjarano. “Hoje é diferente. Sonho com coisas belas ou malucas”.
Nas palavras, o pesadelo ficou para trás. Nos olhos, permanece a força de quem sobreviveu ao campo de extermínio em Auschwitz por um lance de sorte – mentiu que sabia tocar acordeon – e hoje canta, em iídiche e alemão, em um grupo de hip-hop chamado Microphone Mafia.
A trajetória de Esther Béjarano é mesmo inusitada, difícil de apreender. Após o fim da Segunda Guerra, pais e irmã assassinados pelo nazismo, Esther viveu em Israel até 1960. Em um movimento para muitos impossível, retornou à Alemanha, que chama de lar.
Roberto Almeida / Opera Mundi
Esther Béjarano: “Imaginávamos um outro Estado de Israel. Nossa ideia era construir Israel junto com os palestinos”
Hoje, ela vive em Hamburgo e é fonte de inspiração. Em suas palestras nas escolas alemãs, conta como fez parte da Orquestra de Meninas de Auschwitz, e em encontros, como a Conferência Rosa Luxemburgo, em Berlim, lança discursos firmes contra os movimentos neonazistas alemães. Aos 91 anos, ela é aclamada como a “rebelde mais experiente da Alemanha”.
Após apresentação com o Microphone Mafia, Esther lamentou a Opera Mundi, como ex-refugiada de guerra, o curso político da crise atual de refugiados, com perspectivas de endurecimento das regras da União Europeia neste ano. E classificou como “estupidez” a publicação da versão comentada de “Mein Kampf”( “Minha Luta”), livro de Adolf Hitler, que voltou às livrarias da Alemanha na primeira semana de 2016.
Confira a entrevista.
Opera Mundi: Ainda toca o acordeon?
Esther Béjarano: Sim, mas somente em casa. Ou melhor, não publicamente. A última vez que toquei foi com o meu primeiro grupo – nós nos separamos – que se chamava Siebenschön, um nome ridículo (risos), o mesmo do conto de fadas [escrito por Ludwig Bechstein, publicado em 1847]. Mas nós não tocávamos folclore. Tocávamos canções antifascistas. Agora, não consigo mais. É um instrumento pesado para carregar. Minhas costas doem.
OM: O mesmo acordeon que salvou sua vida.
EB: Salvou minha vida, sim, e o mais curioso é que eu não sabia tocar acordeon. Foi um milagre. Eu sabia tocar apenas o piano, e essa maestrina do campo de concentração [Auschwitz], uma polonesa chamada Tchaikowska, disse: “Não temos piano aqui. Mas se você souber tocar acordeon, posso fazer um teste com você.” Como eu queria escapar de qualquer maneira dos trabalhos forçados – eu precisava quebrar pedras pesadíssimas – pensei: “Bom, vou tentar.” Então menti e disse que sabia tocar o acordeon.
OM: E como foi o teste?
EB: Ela pediu que eu tocasse “Du Hast Glück bei den Frau’n, Bel Ami”, uma canção alemã que na época era um hit. Eu conhecia a música e disse: “Puxa, mas faz tanto tempo que eu não toco acordeon. Preciso me ajeitar primeiro.” Ela me mandou para um cantinho para tentar tocar a música e só voltar quando já tivesse conseguido. E foi o que fiz. Fui para o cantinho e pratiquei. Não tive problemas com a mão direita, a das teclas, porque eu tocava piano. Mas a mão esquerda, a dos botões, era a dos acordes, e se eu não tivesse um ouvido musical, não teria conseguido. Descobri os acordes da música e deu certo.
Roberto Almeida / Opera Mundi
Esther no palco: ela é integrante do grupo Microphone Mafia, que apresenta canções antifascistas
OM:Ela acreditou.
EB:Fui até ela e me apresentei. Ela certamente sabia que eu nunca tinha tocado acordeon (risos), mas sabia que eu tinha um bom ouvido.
OM: Depois de sobreviver a Auschwitz, a sra. mudou-se para Israel. E, 15 anos depois, voltou para a Alemanha. Por quê?
EB: Para mim, era muito difícil viver em Israel porque eu simplesmente não aguentava o calor. Todos os médicos me disseram que eu precisava viver em um clima europeu. Esse foi o primeiro motivo. O segundo motivo tem relação com meu marido. Entre o fim da guerra e a mudança para Israel eu me casei e tive dois filhos. Bom, meu marido não aguentava mais participar de guerras. Quando ele voltou da guerra no Sinai, em 1956 [pelo controle do Canal de Suez], disse que nunca mais iria para uma guerra, que nunca mais iria lutar, porque a guerra não era defensiva, mas ofensiva.
OM: E a sua relação com as guerras nesse período?
EB: A primeira guerra que aconteceu lá, contra o Mandato Britânico, em 1948, eu até me apresentei por iniciativa própria. Nosso ponto de vista era de que não precisávamos de Mandato nenhum para nos dizer o que fazer e que poderíamos fazer tudo por conta própria. Eu era uma sionista por formação (risos). Em 1940, fui para um campo de preparação para emigrantes com destino à Palestina. Era a única possibilidade de emigrar. Meus pais me enviaram para lá e lá, claro, todos eram sionistas e eu estava 100% de acordo. Imaginávamos um outro Estado de Israel. Nossa ideia era construir Israel junto com os palestinos, todos aprenderiam agricultura. Era nossa opinião sobre o sionismo.
OM: O que fez a sra. mudar de ideia?
EB: Os que sobreviveram aos campos de concentração não foram bem recebidos em Israel. A opinião era de que os que sobreviventes de Auschwitz teriam, de alguma forma, colaborado com os nazistas – ou não teriam sobrevivido. Essa era a opinião deles. E não fomos nem um pouco bem recebidos e ninguém queria nos ajudar. Nem os britânicos nem Israel. É algo que eu não consigo entender, de maneira nenhuma. Foi um golpe para mim, porque eu poderia ter emigrado para os Estados Unidos. Eu tinha um irmão nos Estados Unidos que queria, de todas as maneiras, que eu fosse para lá. E eu disse não, disse que iria para a Palestina, que a Palestina seria meu lar.
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Roberto Almeida / Opera Mundi
Esther com o grupo Microphone Mafia na Conferência Rosa Luxemburgo, em Berlim, no último dia 9 de janeiro
OM: E o retorno à Alemanha?
EB: Meu marido não tinha como recusar o serviço militar em Israel. Assim, dissemos: “Precisamos ir embora.” Mas ficou a pergunta: “Para onde?” Só havia uma possibilidade: a Alemanha. Meus amigos em Israel me perguntavam se eu tinha ficado maluca de voltar à Alemanha, ao país em que meus pais foram assassinados, em que minha irmã foi assassinada. “Como é possível você fazer isso?”, eles perguntavam. Eu disse que em Israel não dava mais e que não havia outra possibilidade. Eu não tinha perdido a cidadania alemã. Eu sabia também que, assim que voltasse, teria uma ajuda do Estado. Eles estavam felizes em receber de volta os perseguidos pelos nazistas, como uma reparação. Recebemos imediatamente apoio, o que nos ajudou muito. Éramos muito pobres, não tínhamos dinheiro.
OM: O que fez com o primeiro pagamento que recebeu?
EB: Do primeiro pagamento de reparação que recebi do Estado, uma grande parte foi direto para Israel. Meu marido disse: “Isso é vergonhoso. Você recebe uma reparação do Estado e precisa dar uma parte para Israel, eu não vou participar disso!” (risos). Bom, foi isso. Estou na Alemanha há 50 anos. Não posso esquecer que nasci na Alemanha. Que passei minha infância na Alemanha. Que a casa de meus pais era maravilhosa. Que cresci judia. Que antes da guerra a juventude alemã vivia muito bem. A comunidade judaica era sensacional. Meu pai era cantor clássico da comunidade judaica. Havia uma vida cultural linda na Alemanha. Quando cheguei em Israel, senti falta disso, da cultura alemã, mas também me senti bem lá, porque lá havia outra mentalidade. Eles vivem de maneira diferente. São muito amigáveis, sempre prontos para ajudar. Eu poderia ter tido uma vida linda lá, mas não foi possível mantê-la.
OM: O que significa a Alemanha para a sra.?
EB: A Alemanha é, sem dúvidas, meu lar. Essa palavra, lar, ninguém consegue definir. Eu acho impossível. O que quer dizer lar? Mas preciso dizer que foi muito difícil voltar para a Alemanha. Muito. Eu sentia medo. Assim que vi o primeiro policial, pensei na Gestapo. Meu marido começou logo a perguntar: “Como você quer viver aqui? Como vai viver aqui com essas lembranças?” Eu disse que talvez desse conta. Que iria tentar.
OM: Como foi esse processo?
EB: Eu disse: “Não vou morar em nenhuma outra cidade, a não ser a cidade em que meus pais e meus irmãos moramos antes”. Meus amigos me escreveram cartas garantindo que Hamburgo estava linda, que estava diferente e que não tinha mais nenhum nazista. “Você vai ver quando chegar aqui”, diziam. Então decidimos nos mudar para Hamburgo. E moro lá até hoje. Mas preciso acrescentar: se eu não tivesse conhecido gente na Alemanha, de cuja existência eu não sabia antes, gente que havia lutado pela resistência, gente que era antifascista como eu, gente que foi presa, que foi para campos de concentração, se eu não tivesse conhecido essa gente, não teria conseguido viver aqui. Essa gente me deu coragem. Elas diziam: “Esther, nós precisamos de você. Você precisa contar tudo pelo que passou.”
Roberto Almeida /Opera Mundi
Esther é aclamada como 'a rebelde mais experiente da Alemanha'
OM: Em nenhum momento se sentiu discriminada?
EB: Tive uma loja, que me dava muita alegria. Um dia me dei conta de um barulho forte do lado de fora. Eu queria saber quem era. Saí e olhei, pensando: “Isso é jeito de começar uma conversa?” Vi que era o NPD [Nationaldemokratische Partei Deutschlands, o partido neonazista alemão] com os mesmos slogans do passado. Todos. Anticomunismo, antissemitismo, ódio a estrangeiros, tudo o que você possa imaginar. “Eu não posso acreditar!”, pensei. “Falaram que não havia mais nazistas!” Apareceu a polícia, que os protegia de qualquer manifestante que aparecesse contra o grupo, que diziam abertamente “Fascismo nunca mais! Guerra nunca mais!” Fiquei feliz em vê-los, mas me irritei muito ao ver a polícia protegendo os nazistas. Então saí da loja e falei a um dos policiais: “Você está mesmo protegendo essas pessoas? Foram elas que trouxeram infelicidade aos alemães. Vocês não podem protegê-los. Proteja as pessoas que estão contra os nazistas.” Sabe o que ele me disse? “Entre na sua loja ou você vai ser levada presa!” Ele pediu para eu deixá-lo em paz, o que me deixou ainda mais irritada. “Então me leve presa”, eu disse. “Já passei por coisa pior. Eu estive em Auschwitz.” Um dos nazistas disse ao policial que eu deveria ser presa imediatamente por ser uma criminosa. Todos os que estiveram em Auschwitz eram criminosos. Foi demais para mim. No dia seguinte, eu decidi me associar à União dos Perseguidos pelo Nazismo.
OM: Acha que a União Europeia faz um bom papel em relação à crise dos refugiados?
EB: Não. É uma política péssima, tanto da Europa como da Alemanha. A Alemanha recebe refugiados, e há muita gente no país que quer ajudar. Isso eu acho ótimo, maravilhoso. Mas a política é muito ruim. Essa nova regra de deportações que foi proposta é terrível, muito ruim. Com ela, os refugiados que deixaram seus países sob ameaças, como os Sinti e os Roma, podem ser enviados de volta. Acho isso ridículo. Quero que todos os refugiados sob risco de morte sejam aceitos. Nós passamos por isso na Segunda Guerra. Havia países que não aceitavam refugiados, como alemães sob risco. Por exemplo, a Suíça. A Suíça deportou minha irmã de volta para a Alemanha, apesar de saber que ela seria morta. Ela foi baleada já na fronteira. Ela e seu marido. Digo isso porque passei por isso: precisamos receber os refugiados que estão em perigo. E pergunto para esses que reclamam de ver tantos refugiados: de quem é a culpa? A culpa é nossa. A culpa é do Ocidente. Tiramos tudo da terra deles.
OM: Como vê a nossa versão comentada de Minha Luta? Foi uma boa ideia tê-la publicado?
EB: Não. Claro que não. É uma vergonha que esse livro possa ser publicado. O governo deveria ter considerado nossa constituição. Nossa constituição diz que todos os escritos nazistas devem ser proibidos. Então, por que publicá-lo agora? Se tem comentário ou se não tem comentário, para mim não importa. É patético. E esse livro vai ser usado nas escolas como material de ensino. O que as crianças devem aprender com esse livro? A cometer mais crimes? Mesmo com os comentários, acho uma estupidez. Eles acham que vão levar o livro ao público e falar e falar e falar sobre ele em círculos sem falar algo propriamente dito. Esse é o erro. Achar que com os comentários tudo fica bem. Sou completamente contra.