Defender o direito das crianças de ter tempo livre, inclusive para brincar. Parece frase de propaganda de brinquedo, mas essa ideia nasceu de uma preocupação real de um grupo de mães e pais de Santiago, capital do Chile, que identificaram angústias e até transtornos comuns vividos pelos filhos devidos à quantidade excessiva, segundo eles, de lição de casa, uma sobrecarga de vida escolar que eles garantem que prejudica tanto as crianças quanto eles mesmos.
O movimento se chama “La Tarea es Sin Tareas” (que poderia ser traduzido como “a missão é não ter lição”). Nasceu em março, durante um debate entre amigos, pais e mães de crianças de diferentes idades escolares. Daí nasceu um grupo no Facebook, que hoje conta com mais de 60 mil membros, e um site oficial da campanha.
“Houve uma identificação muito rápida com um problema que muitos sentem no seu cotidiano. As crianças no Chile ficam entre seis e oito horas diárias na escola, e ainda têm que fazer lições em casa. Essa realidade sensibilizou as pessoas”, avalia o educador Carlos Ruz, um dos coordenadores do movimento, em entrevista a Opera Mundi.
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Excesso de lição de casa 'é uma exigência que não creio que uma criança tão pequena deva suportar', diz Lorena Angulo
Um dos fatores que trouxe muitas mães e pais para a campanha foi a grande quantidade de testemunhos em comum sobre os transtornos que as lições de casa trazem às crianças. Histórias como a de Lorena Angulo, para quem as lições de casa são uma forma de manter a criança sob pressão o dia todo. “No caso da minha filha, ela tem uma professora muito exigente, às vezes até injusta, e isso faz com que ter lição dentro e fora da escola lhe afete muito”, diz Angulo a Opera Mundi. Sua filha está no “kinder”, equivalente ao pré-primário no Brasil. Angulo conta que algumas vezes flagrou a filha chorando por causa de críticas por “não saber como fazer as lições”, segundo a professora. “É uma exigência que não creio que uma criança tão pequena deva suportar”, afirma ela.
Daniela Miranda é outra mãe integrante do grupo que compartilhou no grupo a experiência da filha com o que considera como excesso de tarefas de casa. “Tenho uma filha que está no primeiro ano do ensino fundamental e tem dias em que ela chega em casa com dez folhas de lições de matemática, mais vinte tarefas de espanhol, sem contar lições de caligrafia, às vezes um pouco mais, ou um pouco menos”, relata ela a Opera Mundi.
Miranda, assim como outras mães e pais de filhos com excesso de lições, reclama principalmente pelo fato de que, no Chile, a jornada escolar completa – medida lançada no ano 2000 e com a qual as crianças chilenas passaram a passar manhã e tarde na escola – deveria supor o fim ou uma diminuição da necessidade de reforço dos conteúdos fora do horário de aulas.
As primeiras semanas do grupo “La Tarea es Sin Tareas” eram somente de troca de experiências como as de Lorena e Daniela. Em poucas semanas, o grupo já contava com mais de mil participantes, e o passo seguinte foi publicar um artigo no jornal chileno La Tercera, que levou a entrevistas em alguns dos canais de televisão mais importantes do país.
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Os autores do artigo – a psicóloga infantil Vinka Jackson e o educador Carlos Ruz – reuniram diferentes informes da OMS mostrando que o estresse causado pela quantidade excessiva de lições de casa pode causar diferentes tipos de problemas físicos e psicológicos aos estudantes.
“As crianças vivem uma fase da vida que é de desenvolvimento, precisam de horas para brincar, para cultivar o ócio criativo (onde criam repertórios evolutivamente indispensáveis) e o vínculo com suas famílias, com os amigos, com sua comunidade. Como podemos respeitar esses limites se, depois de seis ou oito horas de escola, a jornada continua em casa? Que tempo sobra para elas serem crianças?”, questionam os autores. Citando números do Ministério da Educação do Chile, o artigo também afirma que os estudantes pré-escolares chilenos têm seis mil horas a menos de tempo livre nos primeiros sete anos de vida do que o recomendado pela OMS.
Os espaços de divulgação nos meios de comunicação chilenos permitiram ao grupo reunir milhares de novos apoiadores vindos de diversas regiões do Chile – os primeiros integrantes eram todos de Santiago.
Desdobramentos políticos
A repercussão favorável fez com que os representantes do grupo fossem convidados pelo Ministério de Educação para conversar sobre suas demandas. “A primeira conversa com o Ministério aconteceu recentemente (no dia 19 de maio) e foi mais como uma aproximação”, conta Carlos Ruz, um dos representantes do movimento. “Nós expusemos a problemática a respeito das lições de casa e os representantes do Ministério nos indicaram as normas de como funciona a estrutura da educação chilena. Ficou o convite para continuar avançando nas conversas, e com esse primeiro conhecimento mútuo, poderemos pensar depois em normativas ou projetos mais concretos”.
Em paralelo a isso, dois deputados da oposição – Romilio Gutiérrez e Pepa Hoffman, do partido de direita UDI (União Democrata Independente) – apresentaram na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados um esboço de projeto para restringir a quantidade de lições de casa. A ideia já gerou um pedido da Comissão ao Ministério da Educação para a realização de um informe a respeito da necessidade de se enviar lições para casa aos alunos e em que quantidade. Segundo a deputada Hoffman, o resultado pode ajudar a elaborar um projeto com parâmetros mais específicos.
“A jornada completa chegou a ser criticada no início por manter as crianças mais tempo na escola, mas ela visava justamente o contrário: resguardar o tempo delas fora da escola para a família, e é isso que pretendemos resgatar”, diz a parlamentar em comunicado enviado à reportagem de Opera Mundi. Ela também afirma que sua iniciativa não visa “proibir as lições de casa, mas sim criar certo limite para que elas não sobrecarreguem os alunos”.