"São genocidas", bradou Benjamin Netanyahu, no dia 24 de novembro, diante das câmeras, depois do presidente espanhol Pedro Sánchez ter dito que o número de crianças mortas em Gaza é insuportável. "Têm uma ideologia que é uma loucura. No século XXI, depois do Iluminismo, depois da Revolução Científica, depois do avanço dos direitos humanos e da democracia, isto é uma verdadeira loucura", continuou o primeiro-ministro israelense na sua descrição do inimigo.
Netanyahu desenvolveu assim, em poucos minutos, toda a argumentação que justificaria o último episódio de genocídio palestino, e não faltou nada. Criticou o "relativismo moral": o Ocidente não é o mesmo perante as "coisas horríveis" que estas pessoas fazem às mulheres e aos "seres humanos", disse calmamente. "É esse o sistema de valores deles. Não é esse o seu sistema de valores. É contra isso que se deve lutar". Assim, o enquadramento da disputa passa do colonial para o moral: seres humanos contra aqueles que lhes fazem coisas horríveis (que, como o ministro da Defesa israelense já deixou claro, são típicas de "animais humanos").
Na sua prédica supremacista camuflada de discurso antiterrorista, Netanyahu falou de uma unidade que incluía "os nossos países avançados" que procuram "a paz, a prosperidade e o progresso", em oposição aos "bárbaros", que não param quietos, "e se não estivermos dispostos a lutar contra os bárbaros, eles vencerão". Estes "bárbaros" são tão bárbaros que obrigam o exército israelense a bombardear "hospitais, escolas, zonas residenciais, instalações da ONU", porque os atacam a partir de lá. "Não há simetria aqui! Estas pessoas atacam diretamente as nossas cidades a toda a hora. Milhares e milhares e milhares de foguetes. Eles caem em Barcelona, caem em Madrid, caem em Bruxelas, caem em Antuérpia. Ou em qualquer uma das cidades europeias.”
E é assim que Netanyahu confunde os atores do genocídio: na narrativa de Israel, os genocidas são os outros, uma narrativa que se conecta com o genocídio original do povo judeu, aquele perpetrado por uma Alemanha que hoje está disposta a dar carta branca ao genocídio palestino, como se sofrer um Holocausto permitisse a perpetração de outro, em uma interpretação perversa da reparação histórica. Esses "bárbaros", no discurso do governo israelense, são os novos nazistas.
Israel adota este paralelismo histórico com tanta intensidade que, ao mesmo tempo que acusa o povo palestino de ser nazista, luta em todo o mundo para criminalizar a comparação das políticas israelenses com as da Alemanha nazista. E quando fala dos outros, dos bárbaros, Netanyahu e os seus ministros são deliberadamente vagos: nunca fica claro se estão falando do Hamas, dos habitantes de Gaza, de todos os palestinos ou de todos os povos árabes ou muçulmanos do mundo.
Mas Israel, nesta ocasião, através do discurso de Netanyahu, também rascunha um senso de unidade: esta guerra não é sobre os israelenses, é sobre todo o mundo civilizado, é o mundo dos direitos humanos e da democracia que deve ser defendido. Os bárbaros ameaçam as nossas cidades, que não são apenas Tel Aviv ou Sederot: incluem Madrid ou Bruxelas.
O mantra dos bárbaros contra a civilização não tem nada de original, mas é absolutamente eficaz: é muito fácil e compreensível para uma direita identitária há décadas em ascensão, que se alimenta do racismo e do medo, e é extremamente funcional a uma economia de guerra e de vigilância, um sistema que, tendo-se tornado a espinha dorsal da economia, não pode ser perturbado sem que poderosas indústrias e interesses comerciais entrem em colapso.
Há diferentes graus de aceitação desse discurso por parte do Ocidente: como dissemos, a ultradireita não só o aceita, como faz dele uma fonte de inspiração e apoia Israel custe o que custar, porque é Israel que define o caminho que muitos gostariam de seguir. Além disso, a estrutura lógica é muito clara: toda a violência israelense é autodefesa, e mais ainda; ela também nos defende, em Madrid ou em Bruxelas. Toda a violência palestina é terrorismo. Toda crítica a Israel é apoio ao terrorismo.
Mas também se pode reproduzir o enquadramento israelense de formas mais disfarçadas, mas mais insidiosas. Muitos meios de comunicação social fazem isso o tempo todo, veiculando o que Israel diz como a única versão válida. Um caso a ser estudado – esperamos – nas escolas de jornalismo é o seguinte: "Hamas mata mais dez reféns após bombardeios israelenses: quatro são estrangeiros", dizia a manchete do jornal digital espanhol 20minutos.es, alguns dias após o 7 de outubro. No corpo do texto, explicava-se que o Hamas afirmava que os prisioneiros tinham morrido devido aos bombardeios israelenses. "Mas em quem é que você vai acreditar, nos seres humanos ou nos bárbaros?” No 20minutos.es e em grande parte dos meios de comunicação ocidentais, isso está claro. Especialmente após os primeiros dias da ofensiva do Hamas.
Por fim, entre as pessoas de bem e os veículos de comunicação neutros, encontramos frequentemente desejos de paz profundamente desumanos. Desejar a paz sem primeiro exigir justiça é uma forma de pedir a rendição e resignação a um regime de apartheid, à humilhação e à violência cotidiana. Nenhum ser humano aceitará viver num tal status quo sem se revoltar. Pensar que os palestinos devem aceitar o seu destino sem conflito é aliená-los da sua humanidade.
Genealogia da alterização
Israel tem razão, há algo que o une profundamente ao Ocidente, que é o colonialismo. Partilha com ele as mesmas premissas: o discurso colonial cria as suas mitologias de países desabitados, inexistentes, sem um sistema político digno desse nome. Há, no máximo, alguns nativos primitivos, incivilizados; e o poder colonial chega para transformar esse território selvagem num lugar moderno, de progresso tecnológico, social e moral.
Os europeus não se sentiram menos um povo escolhido para estender o seu domínio sobre o mundo do que os sionistas se sentem para ocupar as terras da Palestina. O fato é que a narrativa colonialista já não está mais tão em voga. Na verdade, é melhor mantê-la bem escondida. E é fácil, nestes anos 20 em que a ultradireita se espalha por todo o mundo, encontrar um recurso muito melhor: o da luta de civilizações.
Esta tesefoi estabelecida nos anos 1990, quando o mundo árabe substituiu o bloco soviético no imaginário do "outro". As bases já estavam lançadas, como argumentou o antropólogo Talal Asad: a identidade europeia é construída, em parte, em oposição ao “outro” árabe e muçulmano. Uma narrativa que permeou a luta global contra o terrorismo nos anos 2000.
A luta contra o islamismo substituiu a luta contra o comunismo, afinal ela era capaz de capturar mais adeptos, e a a islamofobia, ou pelo menos o "islamo-alarmismo", seria um pilar identitário de um Ocidente que não queria olhar para as suas próprias ruínas, também um motor econômico insubstituível, pois a máquina da guerra e da vigilância não podia parar.
A certa altura, o terrorismo deixa de estar na ação – o imaginário é esvaziado do terrorismo europeu com o desaparecimento gradual do ETA (Euskadi Ta Askatasuna - Pátria Basca e Liberdade) ou do IRA (Exército Republicano Irlandês) – e passa a estar no sujeito. Os terroristas passam a ser apenas árabes ou muçulmanos, ao ponto de qualquer ato violento que pratiquem ser qualificado como terrorismo, ao ponto de sua própria existência abrigar a possibilidade de terrorismo no discurso supremacista.
Mas Israel vai sempre mais longe: não só lidera a cruzada islamofóbica, como utiliza o racismo para explorar o capital político da vítima, sequestrando todo o povo judeu do mundo. Ao impor o discurso de que a crítica a Israel é antissemitismo, mina a própria luta contra o antijudaísmo, que obviamente existe. Mas como medi-lo se o racismo anti-judaico é misturado à crítica a um Estado genocida?