No mundo encantado de Monteiro Lobato, se boneca e sabugo viram gente, o Aconcágua, ponto mais alto das Américas, na fronteira da Argentina com o Chile, pode muito bem figurar como narrador de uma história.
Afinal, difícil pensar em testemunha mais apropriada para contar à turma do Sítio do Picapau Amarelo como foram os anos da destruição, pelos espanhóis, dos impérios inca, asteca e maia. Lobato morreu em 4 de julho de 1948 antes de concretizar esse livro encabeçado por um monte. Considerava o projeto, no entanto, “sua maior obra”.
Para realizá-lo, pretendia viajar ao Peru durante três meses. Suas ambições latinas, no entanto, ultrapassavam esse plano. Por parte considerável de sua carreira, Lobato se dedicou ao projeto de uma literatura de identidade latino-americana. O que incluía intercâmbio de livros, divulgação de obras de países vizinhos e unificação do mercado editorial da América Latina. A Argentina foi o país com que o escritor estabeleceu mais relações.
Encontros
O escritor chegou a morar em Buenos Aires em 1946, onde teve intensa vida social. Chamou a atenção do então presidente Juán Domingo Perón, que considerou a compra de livros do brasileiro para as escolas da capital. Antes, houve intensa troca de cartas e artigos com intelectuais argentinos.
Agora, a Editorial Losada iniciou a republicação do Sítio na Argentina. Com o título Las Aventuras de Perucho y Naricita, a coleção trará nove livros da turma de La Quinta del Benteveo Amarillo.
O primeiro foi Reinações de Narizinho (Las Travesuras de Naricita), com ilustrações de Paulo Borges e prefácio da própria presidente argentina Cristina Kirchner. Em fevereiro, confidenciou ao chanceler brasileiro Celso Amorim que Lobato marcou sua vida. Em seu prefácio, lembra o impacto de Naricita, Emília y Perucho em sua infância e apresenta os personagens do Sítio aos argentinos. “Minha mãe me comprou esta coleção traduzida para o espanhol e a li durante toda a minha infância”, escreveu.
A argentina explica que, já adulta, imaginou que os tipos criados por Lobato ficariam relegados às suas recordações felizes de criança. Em duas ocasiões, no entanto, eles emergiram com força. Primeiro, em 1976, quando fez escândalo ao flagrar a irmã Gisele arrancando as capas e as páginas de rosto de exemplares do Sítio para camuflar livros perseguidos pela ditadura. A cena tornou aquela tarde “irrespirável” para a adolescente e ficou marcada em sua memória dos tempos duros do país.
Em 2008, já presidente em visita ao Brasil, Cristina dividia a mesa com o colega Luiz Ignácio Lula da Silva e o chanceler Celso Amorim quando os nomes de Narizinho e Pedrinho surgiram por acaso, “nunca vou lembrar o motivo” – ao que o ministro brasileiro logo manifestou ser a leitura preferida de sua infância. “No lo podia creer”, lembra Cristina. Ali mesmo, relata ela no prefácio, surgiria a ideia de o governo brasileiro patrocinar uma nova edição completa das aventuras de Lobato no país de Perón.
Aventura latina
O lançamento é parte do programa de apoio à tradução de obras brasileiras, pela embaixada do Brasil em Buenos Aires. A reedição também será distribuída em outros países latinos, com maior tiragem no Chile, México, Colômbia e Uruguai. A tradução é a original de Juan Ramón Prieto, atualizada.
Em sua tese de doutorado São Paulo-Buenos Aires: a trajetória de Monteiro Lobato na Argentina, a pesquisadora Thaís Alberti, da Unicamp, traçou a sequência de contatos que permitiram a entrada do escritor no mercado editorial da região do Plata. Alberti percorreu bibliotecas e arquivos em busca das cartas, as transcreveu e organizou de acordo com as datas de remessa.
O passo inicial foi dado pelo biógrafo argentino Manuel Gálvez. Ele escreveu uma carta a Lobato enquanto lia Urupês, que “me interessa e seduz de uma maneira excepcional”. A proposta era que Lobato fizesse um artigo sobre a literatura brasileira para a revista Nosotros, dirigida por Gálvez. Depois, Gálvez publicaria um sobre a literatura hermana na Revista do Brasil. Lobato respondeu à sugestão com entusiasmo e, a partir daí, a troca de cartas foi intensa. A correspondência resultou em textos sobre política, economia e literatura na imprensa do Brasil e da Argentina, dos anos 20 aos 40. A estratégia era figurar em periódicos e prateleiras argentinas. Em troca, Lobato traduziria obras e incentivaria sua circulação no Brasil.
As negociações deram frutos, e permitiram a edição de livros e artigos. De volta ao Brasil, em 1931, após quatro anos nos EUA, ele consagrou-se no gênero infantil. E ganhou repercussão na Argentina, com a tradução de Benjamin de Garay para Dom Quixote das Crianças, no jornal La Prensa, em 1937.
Entre 1934 e 1941, Lobato encabeçou campanhas pelo ferro e pelo petróleo, e acabou preso no governo Vargas. Nessa época, Garay traduziria Reinações de Narizinho e negociava outras obras lobatianas. Todos os infantis de Lobato chegariam ao país entre as décadas de 1930 e 40 por diversas editoras. Em 1943, foi lançada uma série infantil com 39 histórias, com a intenção de conquistar o universo escolar.
Coleção
Lobato, que saiu da prisão em 1944,
participava da seleção de tradutores. Era um best-seller no Brasil. Só
em 1937, registra Sérgio Miceli em Intelectuais à Brasileira, vendeu 12
milhões de exemplares, quase um terço da produção brasileira do ano. Em
1940, Lobato passa a ocupar boa parte do setor infantil das livrarias
também na região do Prata. Em 1938, a indústria editorial argentina
vivia um surto. A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) provocara a vinda
de editores e editoras. Ao apostar nessa tendência, Prieto, então
editor da Losada, investiu na tradução de infantis lobatianos. O
lançamento seguinte foi Dom Quixote das Crianças, no fim da década de
30.
Em 1944, o sucesso do brasileiro possibilita à editora
Americalee, associada à Losada, expandir sua atuação em países como
Uruguai, México, além da América Central. Lobato torna-se, então,
motivo de disputa editorial. Prieto passa a investir na publicação de
Os 12 Trabalhos de Hércules, recém-iniciado, e a compilação das cartas
de Lobato com Godofredo Rangel, em A Barca de Gleyre. Dois anos depois,
o brasileiro se mudaria para Buenos Aires. Sua chegada foi motivo de
manchetes e visitas às escolas, que fortaleceram ainda mais seu nome.
Aproveitando a comoção, a loja Harrod's organizou a Semana Monteiro
Lobato.
Lobato associa-se, então, a Manuel Barreiro, Prieto e
Miguel Pilato, para fundar a editora Acteón. Assim, passou a ser uma
espécie de intermediador da literatura brasileira no país vizinho. No
período, estudou a história argentina e o governo de Perón. O resultado
foi seu único livro em espanhol: La Nueva Argentina, sob o pseudônimo
de Miguel Pilato García.
De 1947, aborda o plano Quinquenal peronista,
pelo diálogo entre um pai e seus dois filhos. A obra não chegou a ser
adotada no ensino do país, como Lobato queria, mas a possibilidade
continuou a ser negociada mesmo depois de seu regresso ao Brasil, em
1947 – um ano antes de sua morte.
Prefácio relembra o impacto de Monteiro Lobato na infância argentina
“Mais que lê-los, literalmente devorei esses textos que iam de fantasias mais tresloucadas ao ensino de história, geografia, geologia e todo tipo de conhecimento. Emília, a boneca de pano, teimosa e caprichosa, intrigante e resmungona, mas adorável como poucas, convivia com o Visconde, um sabugo de milho sempre sábio, sério e responsável. Narizinho e Pedrinho, duas crianças fantasiosas, aventureiras, inquietas e sempre desejosas de saber mais, poderiam ter sido qualquer um de nós. Dona Benta, a avó, era uma “avozíssima”, de óculos e cabelos brancos que, com a ajuda da negra Anastácia – a “tia” inefável criadora de Emília, a boneca – faziam do sítio do “Picapau Amarelo”, um lugar em que todos haveríamos de querer viver”.
*Clique aqui para acessar a reportagem original, publicada na Revista Língua Portuguesa
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