O ex-Coordenador Nacional do Projeto Mais Médicos, Felipe Proenço, disse nesta quinta-feira (15/11) que as condições impostas por Bolsonaro para a participação de profissionais cubanos no programa Mais Médicos “não existem em outros países onde Cuba tem programa de participação internacional”, um dia após o governo cubano anunciar que está deixando o programa diante de declarações “ameaçadoras e depreciativas” do presidente eleito Jair Bolsonaro.
“Hoje, o fim da cooperação, vinda dos condicionamentos feitos pelo presidente eleito [Jair] Bolsonaro para a continuidade dos médicos – condicionamentos que não existem em outros países onde Cuba tem programa de participação internacional –, faz com que 29 milhões de pessoas deixem de ser atendidas, isso porque esses médicos estão em equipe de saúde da família”, disse Proenço.
Havana anunciou o fim da participação no Mais Médicos por meio de uma nota publicada na imprensa estatal (leia íntegra aqui) e disse que já comunicou o governo do Brasil sobre a determinação. O texto relata que o Ministério da Saúde de Cuba tomou a decisão diante de uma “triste realidade”, alegando que as modificações pretendidas pelo futuro governo brasileiro são “inaceitáveis”.
“Perante esta triste realidade, o Ministério da Saúde Pública de Cuba tomou a decisão de não continuar participando do programa Mais Médicos”, diz a nota.
Cuba também justificou o encerramento do programa dizendo que Bolsonaro questionou a “dignidade e o profissionalismo” dos profissionais da ilha que atuam no Brasil: “Não é aceitável questionar a dignidade, o profissionalismo e o altruísmo dos colaboradores cubanos”, diz o texto.
Lançado durante o governo da então presidente Dilma Rousseff, em 2013, o Mais Médicos surgiu para estancar a falta de profissionais de saúde. Segundo dados do Ministério da Saúde, na época, a carência era de 54 mil médicos.
A reportagem de Opera Mundi conversou com o ex-Coordenador do Mais Médicos, Felipe Proenço, que também é doutor em Saúde Coletiva e Professor da UFPB.
Qual a dimensão do fim da participação cubana no Mais Médicos? Há uma previsão sobre como ficam as pessoas que eram assistidas pelo programa?
A participação de médicos cubanos sempre foi a parcela mais importante do programa. Chegou a representar 70% dos médicos, mas, ultimamente, correspondia à metade dos participantes. Os únicos dados públicos que temos são exatamente dessa participação, já que são disponibilizados pela Organização Pan-Americana de Saúde. Sabemos que, no momento, são 8.469 médicos em 2.857 municípios, quase a totalidade dos distritos sanitários e indígenas do país. Esses médicos continuam em localidades que foram oferecidas inicialmente para médicos brasileiros. Os médicos brasileiros tinham a opção de ir para esses lugares. Hoje, o fim da cooperação, vinda dos condicionamentos feitos pelo presidente eleito [Jair] Bolsonaro, para a continuidade dos médicos – condicionamentos que não existem em outros países onde Cuba tem programa de participação internacional –, faz com que 29 milhões de pessoas deixem de ser atendidas, isso porque esses médicos estão em equipe de saúde da família. Não é só o impacto numérico. Isso se agrava porque, no geral, esses médicos estão em pequenos municípios, em que basicamente o único serviço de saúde é o posto, não contando com oferta de hospital. Esses municípios, antes do programa, não contavam com profissional médico ao longo da semana. Foi exatamente o [médico] cubano que começou a atender lá. Um agravante disso é na saúde indígena. Quase 80% dos médicos hoje que trabalham com a saúde indígena são médicos cubanos, em áreas distantes, com difícil acesso.
O governo Bolsonaro será capaz de preencher as vagas deixadas pelos médicos cubanos?
O Mais Médicos não é só a vinda de estrangeiros. É, também, a ampliação dos cursos de medicina, das vagas de formação de especialistas, de vagas de residência médica. Quando o programa é lançado é feito um planejamento dessa situação, são propostas mais 12 mil vagas de cursos de graduação de medicina. Tanto que a disposição da Lei 12.871 prevê que, a partir de 2019, boa parte dos médicos teria que passar um ou dois anos nos postos de saúde fazendo formação em medicina de família e comunidade. O próprio programa, então, em seu início, já havia dado a resposta à questão da presença dos médicos estrangeiros enquanto presença emergencial. Após 2016, essas medidas tidas como mais estruturantes, e recorrentemente recusadas pela corporação médica, deixam de ser executadas, então não são criados os cursos de medicina nas áreas de maior necessidade e não são criadas as vagas de residência para os médicos irem aos postos de saúde. Se olharmos as experiências internacionais, são necessárias medidas de formação e efetivação de cursos de medicina, como na Austrália, Argentina e Canadá. Então, recorreu-se a médicos estrangeiro exatamente porque a necessidade era muito grande. As solicitações do governo Bolsonaro feitas a Cuba, que levaram ao fim dessa cooperação, vão gerar uma situação de desassistência a pelo menos 29 milhões de pessoas no país.
Qual seu panorama sobre esses cinco anos de programa?
Foi extremamente exitoso. Foi reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e vem sendo colocado enquanto modelo para outros países, do ponto de vista de atrair e reter médicos em áreas remotas. As pesquisas feitas pelo programa, nesse curto espaço de tempo, também mostram quanto é exitoso, conseguindo aumentar em mais de 30% as consultas em postos de saúde no Brasil como um todo – diminuindo internações e evitando que pessoas piorem seu estado de saúde. O programa melhorou indicadores de saúde no atendimento de gestantes, crianças e diabéticos. É reconhecido internacionalmente. Mas não pode ser pensado só do ponto de vista do provimento. Por isso eram importantes as ações de formação: houve abertura de cursos de medicina no interior, em cidades que não contavam com essa oferta. A condição de tornar o provimento emergencial mais permanente poderia deixar a população desassistida em algum momento. Em nenhum outro país uma medida isolada, como chegou a se prometer no período eleitoral, conseguiu suprir uma parcela tão grande de necessidade de médicos em quase 3.000 localidades. O programa terminar dessa maneira vai penalizar a população brasileira, uma população que historicamente conviveu com a falta do médico. Considero muito infeliz essa exigência que o presidente eleito fez à cooperação. É descabida. O programa trouxe médicos com experiência enorme, já que eles já haviam passado por pelo menos uma missão em outro país, muitos com mestrado e doutorado. É muito infeliz esse condicionamento feito por Bolsonaro. As consequências para a população são muito ruins.
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