Não há na Venezuela quem não se lembre daquele 5 de março de 2013 e o que estava fazendo quando anunciaram a morte do então presidente do país, Hugo Chávez. Nos relatos existem místicas e um sentido espiritual. “Esse dia foi impressionante, fazia um sol tremendo e, uma hora antes do anúncio da morte do comandante, o céu ficou cinza, Caracas escureceu e caiu uma chuva tremenda”, relembra o jornalista e escritor Diego Sequera, editor da página Misión Verdad, que já trabalhou como assessor político em diversos ministérios do Estado venezuelano.
O sociólogo Marco Terrugi também viveu essa experiência. Ele fala sobre um vento frio que invadiu a imponente avenida Baralt, do centro de Caracas. “Muitos falam do vento frio com céu escuro sobre a cidade. Eu o vi, nesse momento estava na avenida Baralt, perto da praça Bolívar, onde estivemos reunidos até a madrugada”, relata o sociólogo argentino radicado na Venezuela.
A morte de Hugo Chávez marcou um antes e um depois na história recente da Venezuela, tanto na política como na economia, mas também no espiritual. Sete anos depois, como está a Venezuela pós-Chávez? Qual é a situação real do país depois das últimas crises? E qual é o legado de Chávez que ainda resiste? Fomos às ruas fazer essas perguntas aos venezuelanos.
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“Chávez foi o primeiro presidente que fez algo por nós. A gente era invisibilizado. Não valíamos nada. Ele foi quem nos deu poder, uma lástima que o perdemos”, diz a aposentada Yolanda Nunes, de 80 anos.
A senhora Yolanda, uma mulher simples da zona norte de Caracas, resume o que alguns especialistas apontam como um dos maiores de legados de Hugo Chávez. “A Revolução Bolivariana, liderada por Hugo Chávez, promoveu mudanças estruturais profundas. Radicalmente profundas. Criou, para muita gente que estava marginalizada, seu lugar no mundo, seu direito de participar da política”, afirma Diego Sequera.
Segundo o editor, o setor que apoia a Revolução Bolivariana, apesar de grande, é silenciado pelos meios de comunicação internacionais. O sociólogo Marco Terrugi diz que o setor chamado “chavismo duro” hoje, sete anos depois da morte de Chávez, representa cerca de 25% da população venezuelana. Mas, por que esse número expressivo de pessoas continua apoiando as políticas e as ideias bolivarianas, apesar da crise que enfrenta o país?
“A herança que Chávez nos deixou a conservamos até hoje. A primeira coisa que ele fez quando chegou ao poder foi acabar com o analfabetismo. Além disso, criou um sistema de educação gratuita, inaugurado com nossa nova Constituição criada em 1999. Depois uma política de distribuição de Canaimas (computadores portáteis) para todos os estudantes das escolas públicas, assim como uniforme e materiais escolares”, diz a professora Silvia Rondon, de 52 anos.
A professora considera que houve avanços importantes também na saúde. “Através de um convênio com o governo cubano, Chávez criou a Gran Mission Barrio a Dentro, um sistema público de saúde de atenção primária nos bairros pobres da Venezuela. Também foram criados hospitais, laboratórios, centros de atendimento especializados e farmácias. Saúde e medicamentos gratuitos. Isso não existia antes de Chávez”.
Entretanto, para ela, o principal legado foi na área da moradia. “Entre todas as políticas, a que nos trouxe mais felicidade foi a criação da Gran Mision Vivienda (programa social de construção de casas populares). Finalmente pudemos ter uma casa digna”. Foram construídas 3,1 milhões de casas populares, ao longo dos últimos 12 anos, impactando cerca de 10% da população venezuelana, segundo dados oficiais.
Para o professor de agroecologia de escolas indígenas, Neomar Delgado, de 31 anos, além de manter esses legados de Chávez, hoje os venezuelanos estão frente a novos desafios. “Nosso desafio ao longo desses sete anos foi trabalhar para tornar a revolução bolivariana irreversível. Hoje somos um povo de luta, aguerrido, que pratica a solidariedade com os outros países e o humanismo, que foi perdido devido a degradação moral provocada pelo sistema capitalista”, afirma Delgado, morador do estado de Anzoátegui, ao noroeste da Venezuela.
Fania Rodrigues
País passou de um cenário de embate político polarizado para uma guerra silenciosa, dizem venezuelanos
O que aconteceu na Venezuela depois de Chávez?
Muito se fala sobre as crises, migração massiva e escassez de comida na Venezuela. No entanto, a crise não é um estado permanente. A situação flutua entre momentos de estabilidade e alguns picos de conflitos políticos e de escassez. Nesse momento não há escassez, mas inflação.
Isso é o reflexo da pressão sobre a Venezuela que aumentou depois da morte de Chávez, diz Diego Sequera.“Depois da morte de Hugo Chávez, veio a ofensiva mais forte e daí em diante entendemos que já não estávamos em cenário de conflito estritamente político, mas em um novo cenário de guerra. Uma guerra silenciosa, inominável, nas sombras”, analisa Sequera.
Nas ruas de Caracas, pessoas como o radialista Daniel Camacaro, da emissora comunitária Rádio Rebelde, se reúnem a cada tarde na emblemática praça Bolívar de Caracas, epicentro da política venezuelana, para debater política cotidiana com quem vai saindo do trabalho. Ele afirma que o primeiro desafio da Venezuela depois da morte de Chávez veio logo depois da eleição de Nicolás Maduro, em abril de 2013. “Tentaram intimidar o povo revolucionário. A primeira arremetida foi feita pelo ex-candidato à presidência Henrique Capriles, que não aceitou a derrota eleitoral. Os protestos violentos da oposição deixaram um saldo de 14 mortos nesse momento”, diz Camacaro.
2014 foi ainda mais violento. Em fevereiro daquele ano, a oposição deu início a uma nova estratégia política que foi chamada de “La Salida” (A Saída), liderada pelo líder político do partido Voluntad Popular, Leopoldo López (padrinho político de Juan Guaidó). Nesse ano, foram mortas 40 pessoas durante protestos violentos realizados por opositores.
No entanto, a crise de 2015 foi o ponto mais duro da escassez de alimentos e medicamentos, de acordo com Diego Sequera. “A crise começou no dia 5 de janeiro. O presidente Nicolás Maduro estava em uma viagem internacional e correu uma notícia divulgada por uma agência de classificação de risco, que teve um impacto surpreendente, de que os militares e os movimentos sociais chavistas iriam dar um golpe enquanto o presidente estivesse fora do país”.
Em poucas horas Caracas estava um caos. Foi aí que começaram as filas para comprar e estocar comida. O governo foi perdendo a capacidade de fornecer alimentos subsidiados, devido a demanda que havia mudado.
Se 2015 foi ano da escassez mais aguda, 2016 foi o período de maior degradação social, onde todos os indicadores de desenvolvimento despencaram junto com o valor do barril de petróleo, tendo a Venezuela uma economia altamente dependente da renda petroleira.
A escalada de violência não parou e alcançou seu ápice entre abril e julho de 2017. Dessa vez morreram mais de 120 pessoas, segundo o Ministério Público venezuelano. A violência política vinha atrelada ao crescimento eleitoral da direita venezuelana, em 2015, com a eleição da Assembleia Nacional, onde os partidos opositores ganharam dois terços das cadeiras do Congresso. Porém, a ofensiva violenta de 2017 custou para a oposição a derrota de duas eleições posteriores: a de governador e de prefeito, entre outubro e dezembro de 2017.
A razão desse efeito negativo, segundo o radialista Daniel Camacaro, foi o fato dos protestos incendiarem justamente as zonas de classe média, de maioria opositora. “Essas guarimbas (como os venezuelanos chamam os protestos violentos) tiveram uma particularidade. Os opositores protestaram em zonas de maioria opositora. Nesse momento, o mundo se deu conta de uma realidade: nós, os chavistas, somos maioria nesse país e o povo defende o processo revolucionário bolivariano”.
Também foi a primeira vez que os Estados Unidos declararam abertamente sua participação direta em eventos políticos na Venezuela. “Nesses enfrentamentos, a população pode ver como os Estados Unidos já participavam dessas ações políticas da oposição injetando dinheiro. Vimos políticos, deputados, estimulando protestos violentos”, relembra Camacaro.
A ausência de Chávez pesou nessa conjuntura, mais complexa e com mudanças na sua estratégia, de acordo com o escritor Diego Sequera. “A nova etapa da Revolução Bolivariana não está sendo menos épica que a etapa anterior, com Chávez. A aproximação dos EUA dos seus aliados estratégicos também fez com que a estratégia mudasse entre eles”, analisa Sequera.
Essas novas estratégias para derrubar o governo de Nicolás Maduro, herdeiro político de Hugo Chávez, encontram sua forma mais sofisticada em 2019, com o deputado Juan Guaidó eleito presidente da Assembleia Nacional no dia 5 de janeiro de 2019, e que se autoproclamou presidente do país no dia 23 de janeiro desse ano. Depois disso, houve uma tentativa de ingressar forçadamente caminhões com ajuda humanitária na fronteira com a Colômbia, que quase resultou em uma intervenção estrangeira, em fevereiro, e posteriormente uma tentativa de golpe de Estado, em abril.
Porém, esses recursos que haviam sido bem-sucedidos na Líbia, Honduras e Paraguai, não encontraram eco na Venezuela. O venezuelano Luis Mendenza, integrante das Milicias Bolivarianas (corpo militar integrante das Forças Armadas, mas composto por cidadãos comuns), atribui as derrotas da direita na Venezuela à consciência política deixada por Hugo Chávez. “Somos um povo consciente. O comandante Chávez nos ensinou e deu visibilidade aos pobres. Nós, os pobres, somos os que colocamos e tiramos presidentes porque somos maioria. A oposição tem que entender isso”, diz o brigadista.
Uma coisa é certa, sete anos depois, Chávez continua sendo o fator de maior influência no debate político da Venezuela. Mesmo entre opositores, a figura do ex-presidente parece blindada à crítica. As divergências atuais se concentram entre Maduro e os líderes opositores. Isso porque, do ponto de vista estrutural, Hugo Chávez promoveu reformas que países como a Argentina, Brasil e Uruguai já haviam feito nos anos 50, como a criação de um sistema público de saúde e educação. Além disso, resgatou a memória histórica do libertador da Venezuela, Simón Bolívar, criando assim uma identidade nacional insistente no país até então.