Educadores, pesquisadores, bibliotecários e outras personalidades ligadas à área da leitura e do livro publicaram nesta quinta-feira (01/10) um manifesto rechaçando o “Conta pra mim”, programa criado pelo governo do presidente Jair Bolsonaro em 2019.
Para os signatários, o projeto se baseia em conceitos “ultrapassados, preconceituosos e excludentes de educação e de família”, surgindo “a partir de valores morais e religiosos, como o certo e o errado, o bom e o mau, o bonito e o feio”. “[O programa desconsidera] o vasto e qualificado conhecimento acumulado de pesquisas sobre a literatura infantil e formação de leitores”, diz o manifesto que, até as 16h desta quinta, já contava com cerca de 1,5 mil assinaturas.
Em entrevista a Opera Mundi, o ex-secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) José Castilho Neto, disse que o programa é mais um desmonte na cultura e educação do país e mais um “ataque” de Bolsonaro. “É um conjunto de ataques, um instrumento de adição de panorama de transformar o brasileiro em vassalo e subalterno, sem personalidades”, disse.
Lançado pelo Ministério da Educação no ano passado, o programa diz defender a iniciativa da leitura no ambiente familiar. No entanto, o projeto vem modificando e censurando histórias e alterando narrativas de conto de fadas universais, consideradas pelo governo como “inapropriadas ou polêmicas”.
Segundo Neto, um exemplo dessa atividade é a alteração de A Bela Adormecida, cuja parte do beijo entre os personagens foi retirada. “Isso é um absurdo que vai na contramão da psicologia infantil e da fantasia da criança […] coloca histórias distorcidas, além de apresentar livros que ninguém tem vontade de ler e mal feitos”, disse.
Para o especialista, o manifesto foi a forma que as instituições que representam os livros e a leitura encontraram de fazer uma “defesa” do setor e formarem um “bloco contrário ao programa nefasto à cultura brasileira e às nossas crianças”.
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Manifesto rechaça programa que mutila histórias infanto-juvenis
O ex-secretário ainda disse que o programa, antes de ser implementado, teve uma consultoria norte-americana, que possui uma “realidade muito distante da nossa”. O especialista afirmou que as ações do projeto não utiliza autores e editoras brasileiras, não dá espaço às tradições da história infanto-juvenil e “mutila” conto de fadas universais, “substituindo parte importante da história por uma determinada visão ideológica”.
A assinatura do manifesto pode ser feita através deste link.
Leia manifesto na íntegra:
Nós, educadores (as), professores(as), bibliotecários(as), pesquisadores(as), escritores(as), ilustradores(as), editores(as), mediadores(as) de leitura, narradores(as) de histórias, produtores (as) culturais, agentes comunitários(as), mães, pais, avós e todos os (as) que nos dedicamos à educação e à cultura das infâncias, recusamos uma iniciativa que não considera as crianças e as famílias brasileiras e suas condições objetivas e subjetivas para ler; que desconsidera a importância da escola como espaço privilegiado para a formação de leitores; que despreza nossas pesquisas e experiências em função de conceitos mal compreendidos e aplicados de maneira aligeirada. Dizemos não a esse programa e reiteramos nosso compromisso formativo na relação entre crianças e livros, ou melhor, bons livros.
Mais que de histórias bonitas e divertidas para passar o tempo com os pequenos, os livros (texto, ilustrações, formatos) são feitos de ideias. Nos livros de literatura, a criança encontra aberturas diversas para compreender o mundo, que é grande e complexo. Esse programa do atual governo decide privilegiar narrativas que estabelecem verdades prontas e fechadas ao invés de proporcionar um repertório que contemple os conflitos, os desejos, os medos, as alegrias e os sonhos humanos, com convites para caminhos plurais. A oferta da língua que narra, canta, orienta, comunica, ordena e subverte já é promessa de alguma liberdade. Entender e se apropriar da língua, falada ou escrita, ampliam os horizontes do pensamento. Em contato com os livros e a leitura, desde muito pequenas as crianças começam a participar da cultura escrita. E começar cedo não quer dizer aprender a decifrar precocemente símbolos gráficos, sair na frente para competir, mas significa, isso sim, contar, desde os primeiros dias de vida, com a abertura para novos horizontes, que as ajudem a compreender o tempo e o espaço em que vivem e as relações de que participam.
Por isso e considerando conquistas como a Política Nacional de Leitura e Escrita e a trajetória do PNBE, dizemos coletivamente não ao Conta pra mim e exigimos a elaboração de um programa que incorpore uma revisão conceitual e executiva, com processos transparentes, que incluam efetivamente os vários agentes que se dedicam ao tema, desde o planejamento das ações até a criação, a produção e a distribuição dos livros.