A vitória arrasadora de Luis Arce na Bolívia – já no primeiro turno, com 55,1% dos votos – traz a esquerda de volta à presidência do país após o golpe sofrido pelo então presidente Evo Morales em 2019. Um personagem fundamental nesse triunfo é o MAS (Movimento ao Socialismo), agremiação à qual Arce e Morales são filiados e que demonstrou seu poder de mobilização e resistência em todo o processo – e precisou se renovar depois do golpe.
De fato, parcelas da população organizadas em sindicatos e movimentos constituem uma força vital para o funcionamento do MAS, o partido que recusa ser definido como um partido, mas como um Instrumento Político para a Soberania dos Povos, acrescentando a sigla IPSP ao nome.
“O MAS não é um partido como tal, mas sim um instrumento que assume a forma de partido para lutar dentro das regras da democracia liberal”. Essa é a explicação de Manoel Mercado, especialista em comunicação política e também um militante do movimento.
Em entrevista a Opera Mundi, o boliviano expõe as tensões que marcam o fazer político da esquerda do país dentro do Movimento ao Socialismo – tensões essas que classifica como “saudáveis e necessárias” para o avanço do partido.
“É uma relação dialética que existe entre os diferentes grupos que integram o partido e entre os movimentos e a direção. As organizações não são do MAS, mas na verdade o MAS é o instrumento delas. É uma estrutura orgânica, uma grande confederação de diferentes setores da população boliviana”, diz.
Embora a sigla já existisse desde 1987 como uma dissidência da Falange Socialista Boliviana, seria apenas em 1999, já sob a liderança do então jovem sindicalista cocalero Evo Morales, que o MAS seria apropriado por uma série de movimentos populares, sindicais, camponeses e indígenas, que vinham encabeçando as lutas sociais no país.
A tendência aglutinadora, que já existia entre os movimentos da última década do século 20, foi incorporada ao MAS. Segundo Mercado, “há diferentes formas de organização de diferentes tendências políticas dentro do partido”.
“O núcleo duro é de origem indígena, formado por povos originários e camponeses que se concentram na zona altiplana do país. Nesse núcleo também está a Central Operária Boliviana [COB], que não mantém um vínculo orgânico com o partido, mas presta apoio. Há outros sindicatos e outros pequenos partidos de esquerda que também se incorporam ou apoiam o MAS, como o Partido Comunista e o Exército de Libertação Nacional da Bolívia”, diz o militante.
O partido após o golpe
Os resultados das eleições presidenciais de outubro de 2019 na Bolívia indicavam uma outra vitória do então presidente Evo Morales, que se encaminhava ao 4º mandato consecutivo. Nas semanas subsequentes da votação, setores da extrema direita, apoiados por policiais amotinados e conservadores religiosos que lutavam uma “batalha ideológica” de tons anticomunistas acusavam fraude no pleito e pediam anulação das eleições.
No dia 10 de novembro, batalhões da polícia e das Forças Armadas tomam quartéis e prédios oficiais e forçam Evo a renunciar. Atos de violência contra militantes do MAS e mortes são registradas. O presidente, que já havia concordado em realizar novas eleições mesmo negando a existência de fraude, renuncia e se exila no México.
Reprodução/MAS
Tanto o presidente eleito quanto Evo agradeceram e atribuíram a vitória eleitoral ao poder de mobilização e resistência dos movimentos
Para Mercado, essa experiência foi traumática para o MAS, que já estava acostumado a ser o partido no poder após 14 anos com Evo na presidência, o que forçou o partido a uma renovação.
“Houve uma mudança após o golpe. Depois de quase 15 anos, as organizações estavam muito próximas do Estado e isso tem consequências positivas e negativas. No momento de ruptura, houve uma certa dependência do Estado e, quando a direita toma o poder e retira o presidente e os ministros, nós ficamos sem direção. Eles conseguiram desarticular o bloco popular”, conta.
Segundo o especialista em comunicação política, nos primeiros meses que se seguiram, “não havia quem tomasse as decisões, quem liderasse a resistência”, já que “toda a alta direção estava fora do país ou perseguida”.
“É nessa condições que se começa a gerar um processo de renovação obrigada, que é justamente pelo que estamos passando agora”, diz.
Governo Arce
A “política entre o poncho (vestimenta tradicional indígena) e a gravata” se tornou uma expressão recorrente para classificar a união entre técnicos e militantes sociais na esquerda boliviana. Esse movimento se expressava na liderança indígena e sindical representada por Morales e o intelectual de esquerda Alvaro Garcia Linera, seu vice.
“Luis Arce não é um político como Evo”, garante Mercado. “Arce vem de um espectro muito mais técnico. Uma figura que será muito importante é o vice-presidente David Choquehuanca, liderança indígena que promete ser o elo do governo com os movimentos sociais”, diz.
Para o militante do MAS, os movimentos sociais que constituem o partido não deixarão de participar do governo de Arce, embora essa participação, assim como os próprios movimentos, não serão as mesmas dos governos Morales.
“Haverá uma nova participação dos movimentos no governo de Arce porque, depois do golpe, eles demonstraram um grande capacidade de mobilização e de resposta política. Em grande medida, eles saem mais fortalecidos e serão eles, junto com a novo liderança de Arce, que farão a gestão pública”, afirmou.
Sobre uma possível mudança no tratamento com as Forças Armadas e a Polícia, que tiveram papel destacado durante o golpe de 2019, Mercado não acredita que vai haver uma contestação dessas instituições, embora veja a possibilidade de o governo exercer um controle diferente sobre o setor.
“Não há um crítica às instituições, mas a certas pessoas dentro das Forças Armadas. Não foram as instituições Polícia ou Forças Armadas, mas foram pessoas que deram o golpe. Então está totalmente descartado seguir por um caminho que altere essas instituições”, disse.