No programa 20Minutos Entrevistas desta segunda-feira (05/04), o jornalista Breno Altman entrevistou a professora de Ética e Filosofia Política da Universidade Estatal de Campinas (Unicamp) Yara Frateschi sobre o papel atual do feminismo.
Para ela, o Brasil encontra-se em uma “guerra cultural” contra o neofascismo e o neoliberalismo de Jair Bolsonaro, que colocam a questão de gênero em primeiro plano e ameaçam as conquistas de direitos das mulheres.
“Estamos sob os efeitos combinados da agenda ultraliberal e ultra reacionária que tentam tirar os ganhos que a gente teve. A construção do ideal de nação dessas duas agendas depende de que a família seja reposicionada. Para a lógica neofascista, a mulher precisa voltar para o lar, voltar para aquele lugar do qual ela jamais deveria ter saído”, explicou a professora.
Segundo Frateschi, o neofascismo busca estabelecer relações sólidas com a religião. A professora ainda acrescentou: “A ministra Damares Alves personifica essa conexão e as perdas que estamos tendo. Ela é pastora evangélica e é chefe do Ministério da Mulher e da Família [e dos Direitos Humanos]”.
Ter alguém como Damares Alves à frente da pasta da Mulher distorce o que é o feminismo, na opinião da professora, e representa uma das tentativas do neoliberalismo de absorver as pautas feministas e neutralizar seu potencial revolucionário.
“A representatividade engana. Não precisamos só de mais mulheres na política. Precisamos de mulheres feministas de esquerda. Paridade de participação não basta porque temos mulheres de direita que avançam pautas de direita. A gente quer um feminismo antirracista e anticapitalista no poder, que lutem pelos direitos de todas as mulheres. Se só trabalharmos o feminismo olhando para a questão de gênero, caímos no discurso do feminismo liberal, muito bem adaptado ao capitalismo”, disse.
Interseccionalidade
Do ponto de vista teórico, o feminismo liberal foi uma das primeiras correntes de emancipação feminina a surgir. O movimento entendeu que gênero era uma questão fundamental na sociedade e uma construção social. Sendo uma construção social, poderia ser desconstruído.
Predominantemente branco, o feminismo liberal “se apoiou no indivíduo. É o feminismo do ‘eu sou, eu faço, eu posso'”. Além disso, “supervalorizou o gênero”, como argumentou Frateschi.
“E o problema disso é que a categoria de gênero, sozinha, é muito precária. Se isolamos gênero como uma categoria social, parece que temos uma mulher única, homogênea, com reivindicações que se aplicam a todas as mulheres”, ponderou.
O que ocorre, na verdade, é que o feminismo existe em uma lógica capitalista e a opressão não se dá apenas de acordo com o gênero: “As mulheres vivem o gênero de acordo com a classe social à qual elas pertencem”, afirmou a professora em referência à Clara Zetkin, militante e política comunista alemã do século 19.
“Se é para entender a situação das mulheres na sociedade capitalista, a gente precisa olhar, primeiro, para a tarefa que organiza a sociedade, que é o trabalho, porque a experiência de ser mulher varia de acordo com a classe. Não significa que as mulheres da elite não sofram algum tipo de discriminação, ela apenas não é a mesma que sofrem as mulheres trabalhadoras”, discorreu Frateschi.
Ela citou como exemplo o movimento sufragista. A reivindicação surgiu das mulheres burguesas que pensavam no ganho que o sufrágio traria: o de reposicioná-las na família, não apenas como cuidadoras, mas como pessoas com poder de decisão; e o poder de disputar a propriedade. Considerando essas duas razões, o movimento não despertou o interesse das mulheres trabalhadoras nem das mulheres negras.
“Raça é outro ponto importante. A opressão contra a mulher trabalhadora branca não é a mesma que a da mulher trabalhadora negra”, acrescentou.
É por isso que hoje se fala muito sobre o conceito de interseccionalidade. O termo foi cunhado em 1989 pela jurista norte-americana Kimberlé Crenshaw, mas o conceito já vinha sendo abordado pelo movimento feminista negro desde muito antes.
“Significa que a gente só entende a opressão contra as mulheres se a gente olhar para os diversos marcadores sociais que operam sobre essas mulheres em posições distintas na sociedade”, explicou Frateschi. Isso significa, na prática, que uma mulher negra e pobre, por exemplo, sofre com o machismo, o racismo e o preconceito de classe ao mesmo tempo.
Apesar de conhecido, o conceito ainda é bastante criticado, até pela própria esquerda marxista, que considera o fator classe como sendo mais importante e dominante sobre outras formas de opressão. Frateschi discorda dos marxistas nesse ponto: “da mesma forma que isolar o conceito de gênero é precário, isolar o conceito de classe também é porque cai no erro de não compreender que raça estrutura classe, principalmente no Brasil. Sueli Carneiro diz que se você olha para classe e separa de raça, você deixa de ver que há uma hegemonia branca no topo e uma hegemonia negra na base”.
O argumento da esquerda que desconsidera a interseccionalidade é o de que ela fragmenta a luta. Para a professora, a preocupação é compreensível, porém incorreta e leva apenas a “desmerecer e deslegitimar outras pautas”.
‘O capitalismo tem a exploração da mulher como pano de fundo’
Diante desse cenário no qual diversas opressões se sobrepõem, Frateschi acredita que a saída é uma luta feminista anticapitalista e antirracista: “o capitalismo tem como pano de fundo a exploração da mulher e a exploração dos escravos negros. O sexismo e o racismo são estruturais no capitalismo. Não dá para acabar com eles sem acabar com o capitalismo”.
No Brasil, ela avalia que no centro da luta feminista antirracista de esquerda deve estar o combate à pobreza, agravada pela pandemia, e que afeta, sobretudo, mulheres negras. “A pandemia aumentou o contingente de mulheres fora da força de trabalho. As mulheres perderam seus empregos mais que os homens, então é necessário adotar medidas de proteção do trabalho de reprodução social”, afirmou.
O trabalho de reprodução social é aquele que constrói pessoas para operar dentro da lógica capitalista, realizado quase que inteiramente pelas mulheres. “Todas as atividades relacionadas a dar à luz, a formar sujeitos e a socializar pessoas desde que nascem até que chegue o momento de ir para o mercado vender sua força de trabalho. É um trabalho não assalariado e altamente desvalorizado, mas do qual o sistema depende e pelo qual ninguém está disposto a pagar”, explicou.
No neoliberalismo, essa situação se agrava, pois o sistema “não se compromete de forma alguma com as pessoas, não há um colchão de proteção”. Por isso, Frateschi defende a necessidade de lutar por auxílio emergencial e outros programas de assistência social que colocam a mulher como protagonistas, como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida. A renda mínima universal seria outra forma de remunerar o trabalho de reprodução social, segundo ela.
Para Frateschi, essas medidas contribuiriam para diminuir até a própria violência doméstica, que aumentou drasticamente durante a pandemia, quando as mulheres foram forçadas a passar mais tempo trancadas dentro de casa com seus agressores.
“Uma mulher não sai de uma situação de violência se ela tem quatro filhos e não tem como sustentá-los. Então medidas de auxílio são gatilhos para mudanças de realidade importantes”, reforçou.