Destacado na Europa como exemplo progressista e apelidado pela oposição de “geringonça”, o governo que, em um pacto inédito, uniu as esquerdas de modo programático em Portugal chegou ao fim deixando incertezas em relação à agenda social e em meio a uma ultradireita fortalecida que deve pautar a imigração como um dos temas da campanha eleitoral.
O país, o primeiro no mundo a alcançar a taxa de 85% de pessoas totalmente vacinadas contra a covid-19, bateu outro recorde, desta vez nacional: durante a pandemia, para facilitar o acesso aos serviços de saúde e ajudas sociais, foram regularizados, de modo temporário, ao menos 356 mil imigrantes que estavam na fila da legalização. A maioria, brasileiros que protagonizam a maior onda de emigração para Portugal desde os anos 1990.
A legislação portuguesa é considerada uma das amistosas do mundo no que se refere à obtenção da nacionalidade, e Portugal possui uma das melhores políticas de integração de imigrantes, segundo o ranking Migrant Integration Policy Index.
Esse mesmo cenário, contudo, alimenta a ira ultradireitista. Até agora, o país parecia incólume à ascensão da extrema direita na Europa, onde ao menos Polônia, Hungria, Alemanha, França, Itália e Espanha viram essa ala ganhar força. Entretanto, a entrada do partido Chega! no Parlamento em 2019, ainda que tímida, marca uma mudança. Com um discurso anti-imigração, o partido chegou a ser a terceira força política nas sondagens para as eleições de janeiro.
“A ascensão da extrema direita é um fato. Mas, para além disso, sempre houve mitos sobre os imigrantes: acham que a mulher brasileira veio roubar maridos e que não falamos português, mas brasileiro”, conta Victor Hastenreiter, da Casa do Brasil de Lisboa. “A nossa luta continua sendo pela aplicação justa e efetiva da lei, pois o caminho, inclusive durante a pandemia, é ainda de muito sofrimento para o imigrante”, diz.
A brasileira Lumena Angeli está há dois anos em Portugal, sem visto. Largou um emprego na cozinha de um hotel no interior de São Paulo para tentar a vida do outro lado do Atlântico, já depois dos 50 anos de idade. Ela, que encontrou um emprego em Famalicão, no norte do país, diz que nunca sofreu preconceito e que tem amigos portugueses, mas batalhou para conseguir ser vacinada. “Rezava todo dia para não ficar doente, ainda mais porque estou no grupo de risco”, conta.
Reprodução
Com discurso anti-imigração, Chega! se tornou a terceira força política nas pesquisas para as eleições de janeiro
Mesmo usufruindo da regularização temporária aprovada pelo governo em 2020, por diversas vezes Lumena ouviu nos postos de saúde que, por não possuir o número de utente (equivalente à inscrição no SUS), não tinha direito à vacina. A primeira dose, finalmente, conseguiu só quando quase 9 milhões de pessoas no país já estavam vacinadas.
Nos planos para o futuro, não está voltar a morar no Brasil: “Quero trazer meu neto para viver aqui, pois a educação é muito boa”. Ela se entusiasma ao contar que o filho de um antigo patrão já falava inglês na pré-escola do ensino público.
O que mudou no governo de António Costa?
Quando em 2015 o socialista António Costa, antigo prefeito de Lisboa, tornou-se primeiro-ministro em um governo minoritário, mas apoiado por partidos da esquerda (Partido Comunista Português, Bloco de Esquerda e Os Verdes), o acordo era claro: reverter a agenda de austeridade imposta pela troika.
Naquele momento, o país havia cumprido parte do programa de privatizações e redução dos gastos públicos assinado com a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI. Era a contrapartida pelo resgate financeiro de 78 bilhões de euros, realizado em 2011, na esteira da crise que assolou boa parte da Europa e levou também Irlanda, Grécia, Espanha e Chipre a pedirem empréstimos.
Passados seis anos, o saldo da agenda inicial é expressivo: aumento do salário mínimo e dos benefícios sociais, fim do corte de salários do setor público, mais contratação de funcionários públicos e eliminação de um imposto extraordinário sobre a renda.
No campo dos costumes e apesar da forte tradição católica do país, o Parlamento aprovou a adoção de filhos por casais do mesmo sexo e acaba de votar um decreto sobre a eutanásia, que será apreciado pelo presidente da República.