Breno Altman é um guia de luxo no mato da política brasileira e tem um talento especial quando se trata de sintetizar os dilemas enfrentados pela esquerda. “O cenário mais provável é irmos ao segundo turno”, adverte no sábado (01/10) à tarde após analisar as últimas pesquisas que foram divulgadas antes do Dia D.
Como muitos dos quadros históricos do Partido dos Trabalhadores (PT), combina uma arquitetura ideológica de pensamento forjado no marxismo com o gosto pelo detalhe e pelas anedotas pessoais. A singularidade de Altman é a sua tentativa de construir uma narrativa que esteja à altura desta linhagem. Foi por isso que fundou o site Opera Mundi, um meio digital que hoje é particularmente dinâmico através do seu canal YouTube.
As duas horas de conversa que tivemos na sua casa no bairro paulista do Pacaembu voaram, mas deram-nos uma ideia do quadro geral das eleições-chave que estão a ser realizadas. Perceber a confiança num triunfo que nos tranquiliza e nos permite voltar a respirar após seis anos de asfixia. Para compreender até que ponto a ameaça de golpe de Estado por parte da extrema direita é um blefe e para esclarecer em que sentido devemos estar realmente preocupados. E para ter uma ideia do que podemos esperar após o regresso de Lula ao poder.
Altman tem algumas certezas firmes: “conheço bem o Lula e ele gosta muito da sua biografia, do seu legado. Não há possibilidade de traições por parte dele”. Mas ele também tem muitas dúvidas sobre o que está prestes a acontecer, e é para estas incógnitas que as nossas perguntas foram dirigidas.
Um raio-x da extrema direita brasileira
Crisis: Tudo parece indicar que Bolsonaro vai perder as eleições. Será que a extrema direita perdeu a sua oportunidade e vai tender a dissolver-se ou é um fenómeno que está aqui para ficar?
Breno Altman: Olha, penso que o bolsonarismo construiu uma corrente neofascista em massa, o que é uma novidade no Brasil. A direita nunca antes tinha conseguido competir com a esquerda nas ruas, exceto talvez na década de 1930 com o integralismo. A direita brasileira sempre foi institucional, no sentido em que interveio através de instituições como as forças armadas. Agora o que temos é um movimento popular da extrema direita. Não me parece que seja temporário. É claro que têm de passar alguns testes para garantir a sua sustentabilidade. Uma delas é que não conseguiram construir uma organização de tipo partidário: teremos de ver como se sustentam quando deixam o governo face à eventual vitória de Lula. Mas há vários indicadores que me permitem dizer que, sim, eles serão válidos após as eleições.
O que é a base social bolsonarista e como está organizada?
Têm quatro tipos de estrutura. Em primeiro lugar, o aparelho armado do Estado, não tanto as Forças Armadas, mas a polícia militar. Recordemos que no Brasil a polícia militar é uma criação da ditadura que nunca foi revogada. Surgem como um substituto para os antigos guardas públicos das províncias encarregados de conter os crimes de rua, para exercer a repressão subordinada às Forças Armadas e não mais aos governadores, com um tipo de hierarquia militar: coronéis, majores, tenentes, capitães. Quando a ditadura terminou, estas forças policiais estavam de novo subordinadas aos governos estatais, mas isto foi formal porque continuaram ligadas aos comandos militares na região. Trata-se de uma estrutura importante, cerca de 500 mil agentes. Bolsonaro passou toda a sua carreira política a defender os seus interesses econômicos e durante o seu governo financiou-os e deu-lhes poderes de uma forma notável.
O segundo setor que alimenta este popular movimento de massas são os grupos evangélicos mais importantes do país, um verdadeiro partido profético. A terceira estrutura são as milícias, grupos paramilitares de extrema direita que surgiram nos anos 90, especialmente no Rio de Janeiro. Quase todos os seus membros provêm da polícia militar e estão organizados para combater o tráfico de droga clandestinamente, ou seja, fora do sistema de requisitos legais. Mas pelo caminho, apercebem-se de que poderiam fazer algo mais rentável, que é controlar os territórios e gerir as atividades econômicas que aí têm lugar. Vender proteção, mas também controlar ligações a serviços tais como cabo, gás, eletricidade. E, finalmente, também se envolvem no tráfico de droga.
Existe uma quarta força, mais recente, emergindo em 2016, e tem a ver com dispositivos que alcançaram uma atividade muito intensa e influente nas redes sociais. E penso que existe agora uma quinta forma de organização, que são os clubes de tiro, aqui no Brasil são chamados CAC [Colecionador, Atirador e Caçador] e multiplicaram-se. Continuam a ter o apoio de um setor da burguesia, têm uma presença importante nos setores médios, vão manter uma forte presença parlamentar e vão eleger alguns governadores. Não vejo de todo o bolsonarismo como um fenômeno passageiro.
A questão é como chegou a esta situação: pode-se dizer que Bolsonaro foi um elemento que o establishment utilizou para deslocar o PT, mas depois ficou fora de controlo?
Penso que é um fenômeno que tem origens diferentes. Vou tentar resumir o que considero serem os principais. Desde os anos 90, o Brasil, como toda a América Latina, tem vivido uma crise estrutural nas suas economias porque o neoliberalismo provocou uma reorganização econômica que retirou o vetor central do desenvolvimento, que era a indústria. Transformou-nos novamente em produtores de matérias-primas e produtos agrícolas. Isto implicava, particularmente em países que tinham alcançado um grau mais elevado de industrialização, como o Brasil e a Argentina, uma deterioração das condições sociais. E gerou progressivamente agitação social.
A esquerda foi capaz de capitalizar este mal-estar durante os primeiros 10 anos do século XXI. Sempre funcionou com esta fórmula: a decomposição social do neoliberalismo fortalece a esquerda. Este é o nosso primeiro erro, porque a decomposição social também pode levar a outra coisa.
Por outro lado, essa esquerda já não era rupturista, já não era revolucionária, já não queria destruir o sistema e pôr outro em movimento. Tratava-se agora de chegar ao governo através de canais institucionais e de mudar a partir do interior com uma estratégia muito gradualista. A dada altura, estes governos conseguiram melhorar a situação da população, sem introduzir mudanças estruturais. Simplesmente aumentaram a procura, melhorando o poder de compra da maioria, investiram fortemente em obras públicas e isso funcionou bem durante algum tempo. Mas isso tem os seus limites, porque só funciona quando o mercado se encontra na sua fase de expansão global. Quando essa situação muda, como aconteceu após 2008, acontece que os fatores utilizados como alavancas pelos governos progressistas se tornam despesas para a burguesia, que aumentam os seus custos de produção e reduzem a sua taxa de lucro. Depois começaram a insistir numa agenda ultraliberal para reduzir os salários, reduzir os direitos e a partir daí. Esta é a base material que aqui no Brasil levou a burguesia a virar-se na direção do golpe de Estado em 2016.
Mas Bolsonaro, nesse momento, não era a opção que os poderes preferiam. Como é que ele se posicionou?
Os velhos partidos da burguesia não tinham condições para derrotar o PT devido ao seu papel na sociedade brasileira. Não podiam ligar-se a um elemento central do golpe de 2016, que era a mobilização social dos estratos médios. Eram partidos puramente eleitorais. Surgiu então o neofascismo, que tinha tido o seu ensaio geral durante as mobilizações de Junho de 2013. Este movimento começou a ser impulsionado pela esquerda, mas a direita passa a disputar o comando das manifestações. Certos grupos extraparlamentares de extrema direita, que operam em redes sociais e conseguem organizar o ódio social das classes médias para o virar contra o governo da Dilma Rousseff, desempenham um papel importante.
O PT fez uma coisa muito estranha: uma aliança entre os mais pobres e os super ricos. Os milionários ganharam mais dinheiro do que nunca, porque nem o seu stock de riqueza nem os seus rendimentos foram alterados. E os mais pobres cresceram muito, graças à transferência de rendimentos provenientes dos impostos que vinham da classe média. Isto fez com que os setores médios se sentissem duplamente pressionados, por cima e por baixo. E começaram a ser atraídos por um discurso de extrema direita que colocou a luta contra a corrupção no centro. A equação é simples: o dinheiro que se paga em impostos é roubado pelos políticos.
O que fizeram os partidos burgueses em 2016 quando as grandes manifestações contra a Dilma eclodiram? Contrataram, entre aspas, as tropas jovens da extrema direita, que se movem como peixes na água em mobilização social e não estão sob o comando das partes. Quando os partidos burgueses conseguem destituir Dilma e [Michel] Temer, pedem às tropas de extrema direita que regressem a casa porque agora a política adulta está de volta. Mas estes grupos dizem não: “vocês são como eles e são também nossos inimigos”.
É então que surge Bolsonaro como representante destes grupos. E oferece-lhes uma perspectiva de poder. Depois há setores da burguesia que também apoiam o Bolsonaro. Eles raciocinam assim: “olhem para este louco, com pouca educação política, que eu nunca convidaria para comer em minha casa, mas ele tem a capacidade de lutar e é capaz de enfrentar o PT”.
Eles provavelmente pensaram que o poderiam disciplinar.
Exatamente. Devemos também ter em conta a Operação Lava Jato, que inclui o apoio dos principais meios de comunicação social e consolida o clima anticorrupção como um elemento na luta contra Lula. Estas são diferentes parcelas que estão ligadas e encontram em Bolsonaro o receptáculo político. É aqui que começam as diferenças com o fascismo. Utilizo uma expressão que é um pouco de brincadeira e um pouco de verdade para descrever Bolsonaro: ele é um liberal-fascista.
As suas ideias são ultraliberais em termos econômicos, como [Javier] Milei. Mas a sua lógica é fascista em termos de organização do Estado. Ele adoraria mudar o regime político para alguma forma de Estado policial, mas o seu modelo não são as velhas ditaduras. O seu ideal é a Colômbia de [Álvaro] Uribe, ou seja, uma tela institucional onde tudo parece funcionar muito bem, mas por baixo há um Estado policial que mata muito mais do que a ditadura argentina.
E porque é que a burguesia finalmente rompeu com ele?
Bolsonaro é disfuncional, ele gera demasiadas crises. A burguesia brasileira, no modo de inserção neocolonial em que vivemos, precisa de boas relações com o mundo exterior, e Bolsonaro tem gerado crises com a China, com países europeus, com a mudança de governo nos Estados Unidos, no Mercosul. Tudo isto é uma confusão para os negócios. Também gera instabilidade interna, porque Bolsonaro provoca e precisa do renascimento do PT.
Portanto, para a burguesia ele é uma boa solução para derrotar o PT, mas depois temos de passar para outra fase e ele não quer. E a burguesia brasileira não está disposta, neste momento histórico, a suportar uma ditadura militar ou um Estado policial. Em termos conceptuais, o bolsonarismo é uma variável do antigo Bonapartismo identificado por [Karl] Marx no livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: é uma força externa ao sistema burguês, que ganha força quando o sistema está em colapso político e procura reorganizar o Estado a partir do exterior para dentro, confrontando mesmo os velhos partidos e a burguesia.
Este Bonapartismo tem duas asas: há uma a que poderíamos chamar Bonapartista institucional, que são as Forças Armadas, que desde o início apoiaram Bolsonaro a fim de recuperar um papel de liderança no Estado brasileiro, não através de uma ditadura, mas através de meios institucionais. As Forças Armadas entraram nesta fase por volta de 2012, quando chegaram à conclusão de que o PT era seu inimigo.
Como chegaram a esta conclusão, e de onde vem este antagonismo com o PT?
Número um: o mundo estava entrando numa nova guerra fria com a ascensão da China, e a vocação do Brasil é o Ocidente. Por outras palavras, é uma carruagem no comboio chefiado pelos Estados Unidos, e a política do PT coloca o Brasil fora desse comboio.
Segundo, a lógica do PT de que o Brasil pode ter um caminho autónomo para o desenvolvimento é uma ideia falhada. O Brasil só pode desenvolver-se se estiver totalmente integrado nos circuitos financeiros do capital mundial. Em terceiro lugar, a ideia de que o desenvolvimento brasileiro poderia ser impulsionado pela expansão do mercado interno é suicida porque gera um tremendo aumento dos custos estatais. As Forças Armadas serão, então, cada vez mais convertidas ao neoliberalismo e ao atlantismo.
Ricardo Stuckert
Para Altman, ex-presidente petista opera com a lógica do povo
O grande desafio para os historiadores será descobrir se Bolsonaro atraiu as Forças Armadas, ou se as Forças Armadas o inventaram. Bolsonaro tem uma capacidade de intervenção em redes sociais que nenhum grupo civil possui. Não temos sequer uma fração do seu poder. Isto é feito com mecanismos tecnológicos que estão para além do alcance de qualquer força política. O problema é que existe uma contradição entre o Bonapartismo institucional das Forças Armadas e o Bonapartismo individual de Bolsonaro, que quer ser o centro do novo sistema que quer construir.
Isto significa que as forças armadas quebraram com Bolsonaro?
Não, há tensão, mas eles ainda estão juntos.
Que capacidade tem o Bolsonaro para não entregar o governo ou dificultar a transição?
O que não significa entregar o governo? Significa um golpe militar clássico. Não será capaz de o fazer. As Forças Armadas não vão aceitar isso, porque as outras condições prévias para um golpe não existem. Os golpes de Estado não são operações de um indivíduo, mas sim de uma classe. Deve haver setores fundamentais da burguesia a apoiá-la, os meios de comunicação social, uma parte da sociedade disposta a apoiar uma ditadura, os Estados Unidos têm de dar o seu aval, e precisa de ter alguma cumplicidade das outras instituições do Estado, do Parlamento e do Poder Judicial.
O que pode fazer Bolsonaro? Fazer pressão, fazer blefe, talvez gere uma certa agitação política. Algo como [Donald] Trump fez no Capitólio? Talvez, mas isso foi um circo, não uma tentativa real de mudar a correlação de forças, foi mais uma operação de propaganda para mostrar à sua base social que ele era um tipo capaz de confrontar a administração Biden. O Bolsonaro pode ser algo semelhante, mas isso não é uma estratégia de poder. Ele não vai impedir Lula de ser o próximo presidente. As Forças Armadas não vão apoiá-lo, nem a Polícia Militar. Pode haver sempre um setor que vai numa aventura, mas os líderes que concordam em seguir por esse caminho, o que fazem no dia seguinte? Vão passar 10 ou 15 anos na prisão?
O significante vazio do retorno da lula
Depois de 40 anos de militância, Altman é uma figura conhecida no mundo político de São Paulo. Membro de uma longa linhagem esquerdista, introduz sempre referências históricas e tem um bom conhecimento da política argentina e de outros países da América Latina. Entre os seus camaradas mais próximos encontram-se duas personagens que foram “liquidadas” pela direita brasileira: a ex-presidente Dilma Rousseff e o mítico José Dirceu. Quando lhe perguntamos se estava a pensar assumir algum cargo no novo governo, o seu rosto transformou-se subitamente num olhar de horror: “não sou bom para isso. Nunca tive uma gravata”, disse ele e desatou a rir.
Será Lula o único que está a voltar?
Penso que nem o Lula sabe. Olha, sei que Lula aprendeu muitas lições com o que aconteceu no país em 2016. Até ao momento em que recuperou os seus direitos eleitorais, em março do ano passado, percebeu que o seu governo e o de Dilma tinham caído (para o dizer brevemente) no erro clássico da ilusão de classe, ou seja, no equívoco de que a estrutura do capitalismo brasileiro força uma reação inevitável da burguesia contra as reformas que afetam os seus superlucros, e do problema fundamental da dependência externa.
Lula sai da prisão, por exemplo, com uma forte consciência anti-imperialista, devido ao papel que os Estados Unidos desempenharam no golpe de Estado contra Dilma. Mas a cabeça pensa onde os pés pisam. E o que está a acontecer é que Lula é o único líder capaz de derrotar o Bolsonaro. E está a ficar convencido de que a única maneira segura de o derrotar é ser o líder da restauração da Sexta República. Mas isto é completamente contraditório com as lições do golpe de Estado. A construção desta Frente Ampla contra Bolsonaro leva Lula, objetivamente, à mesma situação em que o PT se encontrava quando o golpe teve lugar em 2016: uma aliança com setores antagónicos que são neoliberais.
E era essa a única forma de tirar o Bolsonaro de lá?
Não, dentro do PT muitos de nós propusemos outro caminho. Na primeira ronda para ter um programa e uma aliança de esquerda, para construir força social, houve espaço político devido ao isolamento de Bolsonaro e ao colapso dos partidos do centro, e se houvesse uma segunda ronda, então sim, podíamos formar uma frente alargada. Mas sem criar a mesma grande coligação que no processo anterior.
É claro que havia um risco no que propusemos. E Lula, que é um pragmático, disse: “não, esse caminho tem riscos porque talvez a burguesia reconstrua o centro político e em vez de irmos para uma segunda rodada contra Bolonaro, teremos de ir contra eles. Nesse cenário, perdemos. Não podemos assumir o risco. Temos de neutralizar qualquer hipótese. E qual é a forma de neutralizar? Ir para o centro. Bem, digamos que ele ganha as eleições e ponto final. Mudamos o cenário. Estamos de volta ao governo. Muito bem. Então, o que fazemos agora? Mais uma vez o governo vai estar numa situação muito difícil para implementar qualquer programa de reforma, porque dentro dessa grande coligação vamos ter correntes que foram contra Bolsonaro, mas não contra o neoliberalismo. E essas correntes vão exercer pressão, e a burguesia vai fazer chantagem, e se Lula não aceitar a chantagem, vão sabotá-lo, e se não conseguirem enfraquecê-lo com sabotagem, vão vencê-lo. Porque essa é a lógica do processo de acumulação da burguesia brasileira, que não fez e não fará uma escolha para qualquer outro caminho que não seja a exportação de produtos primários e a valorização financeira. Pelo contrário, o Brasil tem hoje uma taxa de industrialização de 9%, a mesma que tínhamos em 1913.
Prevê um cenário semelhante ao dos Estados Unidos?
Não. Acredito que o governo de Lula estará numa disputa entre a esquerda e os neoliberais. E o direito tentará reorganizar-se para apresentar uma opção em 2026. Agora o objetivo é paralisar o governo de Lula, e não derrubá-lo. Já assumiram que vão ter de aguentar quatro anos. Pode um conflito ser precipitado antes disso? Sim, porque a situação internacional é muito complexa, e se Lula avançar numa aliança com a China e a Rússia, e desempenhar um papel decisivo na integração regional para reconstruir a América Latina como um espaço contra hegemônico em relação aos Estados Unidos, uma política mais agressiva contra ele pode ser considerada. Mas o plano original é raptá-la, chantageá-la e neutralizá-la.
Como está acontecendo no Chile, como aconteceu na Argentina, no Peru, e como vai acontecer com a [Gustavo] Petro?
Penso que Petro é um tipo inteligente, que percebeu que não podia cair no erro das políticas de conciliação. Ele está a fazer algumas coisas espetaculares para negociar mais tarde a partir de uma posição de força. O que ele fez com as Forças Armadas, o discurso nas Nações Unidas. A direita colombiana já começou a preocupar-se e isso é um perigo, porque rapidamente chegam à conclusão de que a solução é liquidá-lo.
Não compreendo bem o cálculo da burguesia e não-bolsonarista: eles querem criar uma força capaz de o derrotar em quatro anos ou a sua aposta é disciplinar o Lula?
As duas coisas estão combinadas. Temos de o paralisar, ou seja, colocar-lhe um limite: “ok, concordamos em restaurar a Sexta República. Fazer o país voltar a funcionar normalmente. Fazer políticas para os pobres para que não haja desespero social, também não gostamos disso. Mas a reforma fiscal está fora de questão. A reforma financeira para quebrar o oligopólio dos bancos está também fora de questão. Sem aliança com a Rússia e a China: queremos vender à China, mas não uma aliança geopolítica. Integração latino-americana? Sim, é uma boa ideia, mas nada de acordos com a Venezuela ou Cuba como no passado”.
E eles sabem que isto iria fazer com que Lula caísse em termos de popularidade e que a coesão da esquerda em torno de Lula acabaria, mais cedo ou mais tarde o PT acabaria, os movimentos sociais iriam ficar zangados. Entretanto, estão tentando construir uma alternativa. Têm dois ou três caminhos, um dos quais está à vista de todos: porque não [Geraldo] Alckmin em 2026? Alckmin é uma solução no caso de um novo golpe e uma opção para as eleições de 26.
Outra possibilidade para a direita é rearticular com um forasteiro, como o atual governador de Minas Gerais. Qual é a chave aqui? Uma das questões fundamentais para alcançar a tática da Frente Ampla foi enterrar a narrativa sobre o golpe de 2016, sobre a qual já quase não se fala mais. E isso significa que os setores político e empresarial que lideraram o golpe receberam uma amnistia política, não vão ter de pagar pelo seu apoio ao Bolsonaro. Agora são amigos.
Pode o lulismo reformatado ter uma vitalidade extra que pode dificultar o plano da burguesia?
Penso que sim, porque vai haver muita pressão da esquerda sobre Lula, e o próprio Lula não vai ser apenas um. Lula serão muitos Lulas. Os discursos de Lula são contraditórios um com o outro. Ele é um pêndulo político e não um estrategista. Ele não trabalha de acordo com a lógica da esquerda, que é do universal ao particular, da ideologia ao cotidiano. Isso não tem nada a ver com a lógica do povo, que é do particular à ideologia… se se chegar à ideologia. Lula opera com a lógica do povo.
É um homem de 76 anos, se tivesse 50 anos de idade poderia arriscar duas coisas: uma aventura onde pudesse perder ou um acordo que o destruiria politicamente. Um homem de 76 anos de idade não pode arriscar nenhuma destas duas situações.
Então o que é que ele vai fazer?
A situação é complexa, vamos ter um pêndulo a balançar Lula. Ele fará coisas que enfurecerão a esquerda e depois tomará decisões que deixarão a burguesia furiosa. O Lula é um encantador de cobras. Essa é a sua força e a sua fraqueza. Os encantadores de serpentes têm muito poder, olha para a história do continente. Ele é como um daqueles tipos do circo que consegue fazer malabarismos quando é jovem, mas se perder os seus reflexos ou se alguém sabotar os objetos colocando mais peso sobre eles, então ele pode desviar-se.
Por outras palavras, ele aposta no controlo de fatores de poder antagónicos, mas a situação é diferente do que era há 20 anos atrás. Porquê? Em primeiro lugar, a polarização entre os Estados Unidos e a aliança sino-russa restringe a margem de manobra na América Latina. Os Estados Unidos não estão a brincar, veja-se o que aconteceu com os gasodutos Nord Stream I e II. Não tenho provas, ninguém as tem, nem mesmo Moscou, mas de quem era o interesse em rebentar com elas? Os Estados Unidos não podem dar-se ao luxo de ceder terreno na América Latina porque é a sua reserva estratégica natural, e isto colocará Lula sob muito mais pressão do que no início do século.
Há algo de novo que possa dar vitalidade ao processo?
Aparentemente não, mas ninguém está a morrer de tédio neste país. O PT está muito enfraquecido como partido. O sindicalismo também. Tal como os movimentos sociais, com a relativa exceção do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. Viemos de sete anos de duras derrotas, perda de capacidade financeira, isolamento, tem sido muito difícil. Mas as eleições vão desencadear novas energias.
Como é que se vão manifestar? Não sei. Pode levar a uma renovação do PT, do sindicalismo, dos movimentos populares. Ou pode significar a emergência de outro tipo de formação política. É demasiado cedo para dizer, mas algo vai acontecer. Há demasiadas contradições no cenário para que nada aconteça. A minha aposta política é renovar a esquerda, assim que o Lula vencer. Precisamos de uma esquerda rupturista para enfrentar a extrema direita rupturista. Até Lula, para poder levar a cabo as suas políticas moderadas, precisa de uma esquerda rupturista.
(*) Reportagem publicada originalmente em Crisis.