Os líderes de esquerda da América Latina estão esperançosos com a vitória de Lula e com o possível retorno da política exterior do Brasil que dê prioridade à integração regional, em contraposição à postura de Bolsonaro, avesso aos países vizinhos. Mas existe um país no mundo especialmente dependente da vitória de Lula: a Argentina. Buenos Aires coloca todas as suas fichas políticas na volta de Lula, por questões ideológicas, geopolíticas e até judiciais.
No domingo (02/10) à noite, quando a contagem de votos começou no Brasil, o presidente Alberto Fernández já tinha um avião preparado para embarcar ao Brasil. Queria ser o primeiro chefe de Estado a estar com Lula já na noite da vitória e ficou à espera de uma confirmação no primeiro turno, como previam as pesquisas eleitorais, que não chegou.
O presidente argentino aposta numa vitória de Lula como elemento determinante não só para a integração regional e para a inserção da Argentina no contexto internacional, como para os planos eleitorais do denominado ‘kirchnerismo’, ala mais radical do Peronismo, liderada pela vice-presidente Cristina Kirchner. Os partidários de Kirchner acreditam que o retorno do petista ao Planalto incentive a candidatura da ex-presidente argentina à presidência, apesar de as sondagens indicarem que ela tem uma imagem negativa para em torno de 80% da população do país.
A Argentina terá eleições gerais dentro de um ano e, do ponto de vista internacional, Lula é o melhor cabo eleitoral para ela. No período em que Lula foi presidente (2003-2011), Cristina Kirchner (2007-2015) foi parte de uma onda de esquerda que dominou a região. A vitória de Lula seria a mais importante das recentes conquistas da esquerda, marcadas pela do chileno Gabriel Boric e a do colombiano Gustavo Petro, numa nova reagrupação da esquerda regional da qual Cristina Kirchner se sente integrante.
“Um triunfo de Lula no Brasil, para Cristina Kirchner, permite-lhe expor que Boric no Chile, Petro na Colômbia e Lula no Brasil implicam um giro ao progressismo na região do qual ela é a expressão na Argentina. A vitória de Lula lhe acrescenta uma narrativa ganhadora e ideológica”, indica à RFI o analista político Rosendo Fraga, uma referência na Argentina.
A vitória de Lula não é suficiente para a decisão de candidatura por parte de Kirchner, mas um incentivo para recuperar o terreno regional.
“Ela só vai definir se será candidata em maio do ano que vem, quando vir se terá ou não possibilidades de ganhar. Ela não será candidata para perder. Se vir que vai perder, fará alguma coisa no estilo de 2019, quando criou uma chapa na qual se colocou como vice, ou será candidata ao Senado”, acredita Fraga. “Mas os seus partidários vão insistir com a candidatura dela se Lula ganhar”, reforça Rosendo Fraga, diretor do Centro de Estudos União para a Nova Maioria.
Para Lucas Romero, analista político e diretor da consultora Synopsis, a decisão de Cristina Kirchner por uma candidatura vai depender mais de quem será o opositor que enfrentaria nas urnas.
“Mas, obviamente que, se Cristina Kirchner decidir ser candidata, vai aproveitar o regresso de Lula como um espelho no qual se refletir”, aponta Lucas Romero em entrevista para a RFI.
“Já a oposição argentina não tem nenhum elemento para poder capitalizar a vitória de Lula. Pelo contrário, Lula está muito identificado com o ‘kirchnerismo’ e com a coalizão governista Frente de Todos”, compara.
Épica de Lula nos tribunais
A vice-presidente argentina é acusada em quatro processos por corrupção e, num deles, pode ter uma sentença até o final do ano, depois que o Ministério Público pediu, em agosto, uma sentença de 12 anos de prisão.
A épica de um Lula que supera o cárcere e volta à presidência conduzido pelo povo para retirar a extrema direita do poder e reescrever a História é o roteiro que Cristina Kirchner quer para si própria.
O segundo objetivo de Cristina Kirchner é intensificar o uso do exemplo de Lula, como ex-condenado, para reforçar o seu argumento de uma perseguição que pretende retirá-la do jogo político. A vice-presidente diz ser vítima de uma conspiração denominada ‘lawfare’ que pretende condená-la só para a impedir de concorrer, embora na Argentina não haja uma Lei de Ficha Limpa como no Brasil.
“O triunfo de Lula lhe dá argumentos relacionados ao uso de processos judiciais por corrupção para impedir candidaturas. Ela diz que a querem impedir tal como fizeram com Lula há quatro anos e recorre à teoria do ‘lawfare’ contra governos populares”, explica Rosendo Fraga.
“Lawfare” é o termo usado pela esquerda latino-americana para definir uma guerra judiciária, criada pela direita, com o objetivo de intervir na política e destruir adversários.
O próprio Lula, durante a sua visita a Buenos Aires em dezembro passado, convalidou essa estratégia de Cristina Kirchner. “A mesma perseguição que me colocou em cárcere é a mesma perseguição de que a companheira Cristina foi vítima e é vítima na Argentina”, afirmou o petista, durante um discurso na histórica Praça de Maio.
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Vitória de Lula não é suficiente para decisão de candidatura por parte de Kirchner, mas incentivo para recuperar terreno regional
Lucas Romero também vê um reforço do uso do caso Lula tanto na Justiça, quanto numa eventual campanha eleitoral. “É o caso Lula que a leva a construir a tese de ‘lawfare’ e a vitória de Lula seria a ratificação política e eleitoral de que a sociedade brasileira não culpou Lula judicialmente”, avalia Romero.
Para Cristina Kirchner, uma legitimação no poder através do voto popular equivale a uma declaração de inocência. É como se as urnas apagassem as sentenças; uma espécie de imunidade através do voto.
“Ela leva os processos judiciais a uma espécie de legitimação popular. Uma vitória nas urnas concede imunidade como medida do quanto a opinião pública percebe a culpabilidade de um dirigente”, traduz.
Lula como cabo eleitoral
Com Lula na presidência, o governo argentino teria um cabo eleitoral de peso no cenário internacional. Lula faria campanha pelo ‘kirchnerismo’, como ele mesmo já indicou em dezembro, quando esteve em Buenos Aires para agradecer o apoio de Alberto Fernández, que o visitou na prisão em julho de 2019.
“Nunca vamos nos esquecer desse gesto quando mais precisávamos. Seremos sempre gratos. Alberto Fernández pode contar conosco”, disse à RFI o autor do plano de governo Lula e um dos fundadores do PT, o ex-ministro e ex-senador Aloizio Mercadante.
Porém, as sondagens indicam que, se as eleições argentinas fossem hoje, a oposição derrotaria Cristina Kirchner.
Enquanto Alberto Fernández colocou todas as fichas em Lula e deu os “parabéns ao seu querido amigo pela vitória no primeiro turno”, a coalizão opositora de centro-direita Juntos pela Mudança (Juntos por el Cambio), favorita nas próximas eleições, emitiu uma sóbria nota na qual deu os “parabéns ao povo brasileiro pela nova demonstração de força da sua democracia”.
“Lula vai fazer campanha a favor de Cristina Kirchner ou do seu candidato, mas a tendência é de vitória da centro-direita”, prevê Rosendo Fraga. Se eleito, Lula vai fazer campanha pela continuidade do “kirchnerismo”, mas o mais provável é que conviva com o kirchnerismo por menos de um ano.
“Se vencer, Lula vai assumir e Alberto Fernández terá menos de um ano de mandato num contexto em que o cenário é realmente adverso para o governo. Provavelmente, no ano que vem, essa tendência continue. Os números indicam que as probabilidades de um triunfo dos governistas são muito baixas”, concorda o especialista em opinião pública Lucas Romero.
Impacto na região
Na América do Sul, os países governados pela direita são hoje Equador, Paraguai e Uruguai, mas toda a região, independentemente da ideologia, tem uma expectativa: que o Brasil volte a priorizar a integração regional como a sua plataforma de inserção mundial. Esperam que Lula preencha o vácuo que Bolsonaro deixou ao virar as costas para os vizinhos.
Durante o governo Lula, a síntese da política externa era que, para ser um ator global, o Brasil precisava liderar a sua região, uma liderança baseada na representação da região nos foros internacionais.
“Com Lula, a América do Sul vai voltar a funcionar como região, algo que, com Bolsonaro, não foi possível. O Brasil vai voltar à CELAC e, provavelmente, tente revitalizar a UNASUL”, acredita Rosendo Fraga.
Em janeiro de 2020, alinhado aos interesses dos Estados Unidos, o governo de Jair Bolsonaro decidiu suspender a participação do Brasil da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC), um projeto idealizado pelo venezuelano Hugo Chávez. O objetivo foi esvaziar o peso do foro, mas, sobretudo, a voz de Cuba, Venezuela e Nicarágua, regimes autoritários da região.
Em abril de 2019, por considerar um projeto de integração da esquerda, o presidente Bolsonaro decidiu seguir o exemplo de outros países, então governados pela direita, e retirou o Brasil da União Sul-Americana de Nações (UNASUL), um projeto criado por Chávez e Lula.
“Aqui na Argentina estão tomando com muito entusiasmo em alguns setores o início do processo de inclusão da Argentina nos BRICS. Obviamente, num contexto de governos afins entre Argentina e Brasil, essa inclusão da Argentina seria acelerada”, observa Lucas Romero, em relação ao bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
A aliança entre Brasil e Argentina define o eixo da integração regional, relegada pelo atual presidente Bolsonaro, desde que Alberto Fernández chegou ao poder, há quase três anos. Alberto Fernández e Jair Bolsonaro nunca tiveram uma reunião bilateral, apesar de os dois países serem um o principal sócio político-estratégico do outro. Essa é a realidade que o governo argentino quer que mude se Lula ganhar.