Ao contrário do que muita gente pensa, nos Estados Unidos o carteiro nem sempre toca duas vezes. O normal é que não toque nunca à porta, mas deixe a correspondência nas caixas do correio. Por isso, quando os carteiros começam a tocar insistentemente, as pessoas assustam-se. Hoje em dia, eles são quase sempre sinônimo de más noticias, de que alguém quer alterar a paz familiar e penetrar nas nossas vidas com más intenções.
Foi assim que, no início de 2008, dezenas de milhares de pessoas nos Estados Unidos começaram a perceber que suas vidas estavam a dar uma volta. Uma mudança irreversível, que iria ter consequencias terríveis na vida familiar. Eram cartas de despejo. Papéis frios, impessoais, em que os bancos começavam por tratar o cliente por “estimado”, senão “querido”, mas concluíam dando-lhe um prazo de 90 dias para sair de casa.
Quando Maria Amélia Rodriguez, uma emigrante salvadorenha com 15 anos de vida nos Estados Unidos, recebeu uma carta parecida, não queria acreditar. Dois meses antes, tinha deixado de pagar a hipoteca, quando a mensalidade aumentou subitamente, sem grandes avisos. “Sabia que ia aumentar, mas não tanto”, afirma.
Rodriguez foi vítima do “subprime”, uma espécie de loucura bancária com que, no início desta década, as imobiliárias começaram a vender o “sonho americano”, isto é, a casa própria, e que, anos depois, virou a maior dor de cabeça do país.
Funcionava assim: uma pessoa ia ao banco, pedia um empréstimo, nos primeiros dois a três anos pagava apenas juros baixos e depois vinha o “salto”, ou seja, começava a pagar o capital e juros mais altos, quase sempre a uma taxa média de 12%. Uma brutalidade nos Estados Unidos.
Foi a época em que os bancos vendiam esta modalidade de empréstimo como se fosse a “última Coca Cola do deserto” e única possibilidade para as pessoas pobres terem casa própria. Era o “não se preocupe agora que paga depois”.
Milhares de famílias compraram casas dessa forma sem ter uma noção exata de que, dois ou três anos depois, a hipoteca ia subir. E os bancos também não ajudaram muito a esclarecer o público.
Os indícios de que a crise era profunda começaram a aparecer nos primeiros meses do ano passado. Os bancos informaram sobre um ligeiro aumento nos atrasos do pagamento das hipotecas e cartões de crédito. Seguiu-se um alarme decretado em alguns estados mais pobres, como Flórida, Luisiana e Novo México, e a crise acabou por se instalar em Wall Street.
Só na Flórida, segundo números do governo estadual, 7% das famílias deixaram de pagar suas casas, cartões de crédito e a mensalidade dos automóveis. O número não é casual. Corresponde exatamente à taxa de desemprego, a pior nos últimos dez anos.
Como costuma dizer o economista Jaime Salazar Carrillo, da Universidade Internacional da Flórida, “quando a pessoa perde o emprego, a primeira coisa que deixa de pagar é a casa, o carro e o cartão. Guarda o dinheiro para a comida e medicamentos”.
A crise agravou-se porque, ao contrair-se o mercado imobiliário, caiu o preço das propriedades e os governos locais e estaduais, que determinam o valor básico de um imóvel para efeitos de impostos, viram diminuir suas receitas e, portanto, a capacidade de oferecer serviços públicos.
Por outro lado, as pessoas ficaram virtualmente sequestradas nas suas casas, com uma hipoteca calculada num valor muito superior ao valor real da propriedade. Ou seja, devem mais do que aquilo que a casa vale.
Leia a segunda parte da reportagem.
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