Na atual conjuntura política da Alemanha, caracterizada pela ascensão da extrema direita, há uma simpatia entre a governança do país europeu e o Estado de Israel, também governado por uma ala conservadora. Nesse sentido, qualquer manifestação da população alemã contrária à guerra na Faixa de Gaza e à política israelense é passível de crime, de acordo com o deputado alemão Ferat Koçak, do partido de esquerda Die Linke.
A Opera Mundi, Koçak disse que o Estado alemão impõe uma “solidariedade incondicional” ao governo de Benjamin Netanyahu, afirmando que aqueles que protestam contra o massacre na Faixa de Gaza “sofrem violência da polícia”.
“Todas as pessoas que querem protestar contra a ocupação israelense e a guerra nas regiões palestinas sofrem violência da polícia. Os direitos fundamentais são limitados. Entre os apoiadores da causa palestina na Alemanha, também há judeus, mas eles também acabam sendo presos”, afirmou o parlamentar.
Em julho, o deputado Koçak veio ao Brasil participar de um debate promovido pela Fundação Rosa Luxemburgo, a Editora Expressão Popular e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tendo como tema principal os riscos enfrentados pela sociedade com o avanço da extrema direita.
O parlamentar relatou os ataques coordenados pelo NSU (Movimento Clandestino Nacional Socialista), grupo militante neonazista que persegue o deputado por motivações políticas, a ascensão da extrema direita na Alemanha e as posições tomadas pelo país europeu em relação à guerra promovida por Israel na Faixa de Gaza.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: a ascensão da extrema direita na Alemanha tem acentuado a polarização do país?
Ferat Koçak: a situação de polarização na Alemanha não é bem parecida à situação no Brasil. Quando a gente vê o partido da direita, que é Alternativa para a Alemanha (AfD), sim, claro, eles foram ganhando popularidade. Mas quando olhamos para as eleições europeias, eles conseguiram 16% dos votos. Ou seja, 16% com um partido que é parcialmente fascista, mas temos também 84% das pessoas que votaram em partidos não fascistas.
Lógico, devemos examinar quem são esses 84% e em quem eles votam. O governo alemão, neste momento, está dividido principalmente em três partidos. Dois desses partidos se dizem progressistas, enquanto um partido se autoproclama neoliberal, que é o FDP (Partido Liberal Democrático). O detalhe é que precisamos entender que a política que esta coalizão pratica é racista. É uma política que a própria AfD faria. Nesse sentido, precisamos começar a olhar mais ‘para o meio’, porque é aí que está o problema.
O que você quer dizer com “olhar para o meio”?
Acredito que a gente precisa de duas estratégias, uma ao lado da outra, de forma simultânea. Primeiro precisamos de uma coalizão bem ampla contra a extrema direita. Para isso, é muito importante envolver outros partidos como, por exemplo, o CDU (União Democrata-Cristã da Alemanha) e concentrar força.
Não basta apenas impedir os partidos de trabalharem com os neoliberais, mas também fazer com que se posicionem explicitamente contra. Precisamos também pressionar nas ruas. A gente já teve essas coalizões no passado, mas o que realmente tem faltado é a pressão que vem da rua. Isso funciona. A gente viu isso funcionar nas eleições europeias.
Como esquerda, devemos criticar as políticas atuais, mas também oferecer alternativas para ganhar as pessoas.
O que tem atraído na extrema direita?
A política neoliberal que partidos como FDP realizam cria uma terra fértil para ideias fascistas e nacionalistas. Essas ideias estão influenciando a população. Uma política em especial que incentiva esse comportamento é o corte do Estado nas verbas. A população está ficando cada vez mais descontente com isso e a extrema direita propõe soluções muito fáceis. Ainda por cima, a AfD coloca a culpa desse cenário aos imigrantes e refugiados sob o argumento de que é investido muito dinheiro neles e não na população alemã.
O principal problema é a crise econômica. A população, os seres humanos, os animais e a natureza estão sendo explorados para o ganho de poucos. Para isso, precisamos de soluções baseadas nos valores da esquerda.
Acontece que, na Alemanha, a esquerda não está conseguindo atingir a população. E é aí que as pessoas recorrem às soluções fáceis e simples que a AfD oferece. A AfD conseguiu, desde muito cedo, entender a força das mídias sociais. Então eles estão utilizando bastante esses meios para ganhar, sobretudo, a popularidade entre os jovens. Esse foi um ponto crucial que fez com que a direita na Alemanha conseguisse espaço.
Você foi ameaçado pelo NSU, o Movimento Clandestino Nacional Socialista, um grupo militante neonazista alemão ativo entre 2001 e 2010. Gostaria de entender o esquema dessa organização de extrema direita e sua relação com a AfD.
Eu ainda continuo recebendo ameaças, mas não diretamente do NSU, e sim do NSU 2.0. É uma espécie de um ‘seguidor’ do NSU.
O que aconteceu é que uma pessoa conseguiu obter meus dados pessoais por meio do sistema de informática da polícia. Por conta disso, em 2018, houve até um atentado com fogo na minha casa, contra a minha família, em Neukolln, no bairro onde moro em Berlim.
Esses tipos de ataque vêm aumentando desde 2009, quando eclodiu uma série de atentados com fogo e com ameaças de morte aos considerados ‘inimigos políticos’. No nosso caso realmente foi uma questão de vida ou morte porque se a gente tivesse saído de casa cinco minutos mais tarde, não teríamos sobrevivido. Foi realmente por pouco.
Uma questão muito grave é que ficamos sabendo que o suspeito principal desse atentado era antes um membro da diretoria do partido AfD no meu bairro. E o melhor amigo dele era o líder municipal do partido NPD (Partido Nacional-Democrático da Alemanha), seguidor do partido NSDAP (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, mais conhecido como Partido Nazista).
A polícia soube que eu estava sendo perseguido, mas não fez nada. Posteriormente descobrimos também que houve um encontro entre um dos policiais cientes do caso com um dos suspeitos. E houve envolvimento do promotor de Justiça, que também integrava a AfD.
Hoje tem uma Comissão Parlamentar de Inquérito que está investigando esses casos e também o processo criminal no tribunal. Está paralisada há seis anos e meio. Isso mostra que a AfD tem sim ligações com os órgãos públicos. Podemos dizer que a AfD é o braço direito dos nazistas nas ruas.
Quando aconteceu uma série de assassinatos coordenados pelo NSU, descobrimos que o órgão de proteção constitucional também estava envolvido nos casos. Eles estavam todos na mesma mesa.
É realmente muito preocupante quando a gente olha que a AfD está ganhando o espaço. À medida que ela ganha força, mais frequentes os ataques do tipo contra os ‘inimigos políticos’. Acabam tendo mais coragem de cometer crimes, cenário similar ao que vimos nas eleições europeias.”
Vamos falar sobre a guerra na Faixa de Gaza. Sabemos que a Alemanha é o segundo maior fornecedor de armas a Israel. Em 2023, as exportações na área da defesa alemã subiram quase dez vezes em comparação a 2022, principalmente após o 7 de outubro. Alguns dizem que a razão pela qual a Alemanha tem auxiliado a ocupação israelense tem relação com o passado, uma espécie de “reparação histórica”. No entanto, no presente momento, testemunhamos um genocídio não de judeus, mas de palestinos. Como você vê essa contradição?
Primeiramente, devemos reconhecer que a Alemanha tem uma responsabilidade histórica perante todos os judeus no mundo inteiro. Agora eu vejo que há um problema na definição do antissemitismo. Essa definição impede que haja uma crítica contra a política israelense e, sobretudo, quando a gente leva em conta que Israel é governado pela extrema direita.
Todas as pessoas que querem protestar contra a ocupação israelense e a guerra nas regiões palestinas sofrem uma violência da polícia. Os direitos fundamentais são limitados. Entre os apoiadores da causa palestina na Alemanha, também há judeus, mas eles também acabam sendo presos.
O que temos na Alemanha é uma razão do Estado e essa razão do Estado diz solidariedade incondicional a Israel.
A situação em Gaza é tão drástica que é impossível ficar calado. Por isso a esquerda e o meu partido defendem que não haja mais exportação de armas, que haja um cessar-fogo e, também, que as vítimas palestinas possam ser trazidas para a Alemanha para receber ajuda médica.
Nós também exigimos um basta à repressão das pessoas que estão protestando na Alemanha contra o que está acontecendo em Gaza. Reivindicamos que a Palestina seja reconhecida como um Estado independente. Todos falam sobre uma solução de dois Estados. Se a gente está falando de dois Estados, então a Palestina precisa ser um Estado próprio.