O ex-presidente Raúl Alfonsín, morto na noite de ontem (31) após sofrer de câncer no pulmão por três anos, foi um político essencial para a consolidação da democracia argentina, segundo manifestações públicas de personalidades do país vizinho e fontes consultadas pela nossa reportagem, independentemente de preferências ideológicas. Todos destacam o julgamento das juntas militares em 1985, que terminou com a prisão da cúpula da ditadura, como um dos maiores feitos de sua gestão (1983-1989).
“É o pai refundador da democracia argentina. Em 1983, não só estava em disputa uma eleição, mas um modelo de democracia que o país adotaria: se seria construído sobre a impunidade ou sobre o julgamento dos crimes berrantes cometidos pela ditadura“, analisa o atual subsecretário geral da Presidência, Gustavo López, da União Cívica Radical, partido de Alfonsín.
López ocupou vários postos durante o governo de Alfonsín. “Ele propôs as bases da nova democracia. Desde que se iniciou o ciclo de golpes de estado, em 1930, era possível fazer política fora da democracia. A partir de seu mandato, isso acabou. Inclusive durante a profunda crise de 2001, a solução foi encontrada dentro do sistema”, lembrou.
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“É um momento de dor, de muita pena, de grande pesar”, disse o ex-presidente Fernando de la Rúa, que governou o país entre 1999 e 2001. Ele sublinhou “a necessidade de buscar os exemplos valiosos que deixa aquele que entregou sua vida à luta pela república e pela defesa da democracia”.
De la Rúa foi o candidato da UCR nas eleições de 1999 e em 2001 renunciou, após uma série de protestos populares motivados pela crise financeira que se instalava no país, provocada principalmente pelo colapso do sistema de paridade entre peso e dólar, implantado pelo antecessor Carlos Menem (1989-1999).
“É um homem de quem eu gostava muito. É um modelo, um exemplo, sobretudo de honestidade, em tempos de escassez desse recurso”, afirmou o ex-presidente Eduardo Duhalde (2002-2003).
“Nós, todos aqueles dirigentes que éramos jovens quando Alfonsín assumiu a presidência, abraçamos com muita força sua vocação democrática. Sempre esteve na mesma tribuna, dizendo o que pensava. Receberá um profundo reconhecimento por ser quem encabeçou o retorno democrático”, disse Néstor Kirchner (2003-2007).
No exterior, três ex-presidentes expressaram pesar pela morte de Alfonsín: Jimmy Carter (Estados Unidos), Ricardo Lagos (Chile) e José Sarney (Brasil), que publicaram colunas no jornal Clarín.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou em nota que via em Alfonsín um interlocutor e um amigo. “Com a morte de Raúl Alfonsín, não só a Argentina, mas toda a América do Sul, perde um grande construtor da democracia”.
“Pude testemunhar a decisiva contribuição do presidente Alfonsín para que Brasil e Argentina caminhassem rumo à construção de sua aliança estratégica. Sua visão de longo prazo em prol da integração e da democracia foi decisiva para a criação do Mercosul”, completou o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, em recado ao homólogo argentino, Jorge Taiana.
Impunidade
Alfonsín também foi o presidente que, sob pressão de três levantes militares, promulgou as leis de Obediência Devida e Ponto Final, que asseguraram a impunidade da maioria dos quadros das Forças Armadas envolvidos em repressão durante a ditadura. As “leis do perdão”, como ficaram conhecidas, foram revogadas durante o governo de Néstor Kirchner, o que permitia a reabertura dos processos judiciais, que já levaram alguns torturadores para a prisão.
Alfonsín foi muito questionado também pela série de negociações secretas que manteve com Carlos Menem para alcançar o que foi conhecido como “Pacto de Olivos”, que permitiu a reforma da Constituição e a candidatura que levou Menem ao segundo mandato.
“Entendo os erros de Alfonsín. Como político, teve virtudes e defeitos. Como erro de seu governo, destaco a política econômica; como acerto, o Mercosul”, assinala Gustavo López. “Me alegra que tanto a sociedade como a política não valorizem as pequenas querelas de Alfonsín”.
Veja fotos da agência EFE que mostram Alfonsín com a presidente Cristina Kirchner em outubro de 2008 e cenas do velório, hoje. O número 83 na camisa da seleção argentina se refere ao ano da volta ao regime democrático, quando Alfonsín assumiu a presidência.
Biografia
Raúl Alfonsín, advogado, era filho de um imigrante da Galícia (Espanha), republicano radicado em Chascomús, província de Buenos Aires.
Em 1945, ingressou no Liceu Militar como subtenente da reserva. Em 1946, ano da primeira vitória eleitoral do ex-presidente Juan Domingo Perón, Alfonsín se filiou à União Cívica Radical. Foi vereador, deputado estadual, federal, presidente e, posteriormente, senador.
Em 1972, fundou, dentro da UCR, o Movimento de Renovação e Mudança, identificado com princípios social-democratas e contrário às estruturas velhas do partido. Daí surgiu grande parte dos quadros políticos que ocuparam postos importantes durante sua gestão.
Três meses antes do golpe militar de 1976, Alfonsín fundou a Assembléia Permanente pelos Direitos Humanos, junto com o bispo Jaime de Nevares, a socialista Alicia Moreau de Justo e o Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel.
Em 30 de outubro de 1983, foi eleito presidente com 51,7% dos votos, contra 45% da candidatura peronista.
Uma de suas primeiras medidas foi ordenar por decreto que fossem julgadas as juntas militares e as cúpulas guerrilheiras, inaugurando a “teoria dos demônios”, questionada por defensores dos direitos humanos. A ideia é que a violência guerrilheira teria desatado o terrorismo de Estado.
“Feliz Páscoa”
Durante a Semana Santa de 1987, aconteceu o primeiro de três levantes militares liderados por um setor ultranacionalista do Exército, que havia participado da “guerra suja”, a fase mais rígida da ditadura, entre 1976 e 1983, da Guerra das Malvinas (1982) e se negava a ser julgado pelas violações cometidas na ditadura.
Alfonsín se opôs ao derramamento de sangue e fez um acordo com os rebeldes, cunhando a frase célebre: “Feliz Páscoa! A casa está em ordem e não há sangue na Argentina).
Durante seu governo, lançou a união econômica entre Brasil e Argentina, que depois viria a dar no Mercosul, e firmou o Acordo de Paz e Amizade com o Chile, pondo fim às disputas pelo Canal de Beagle, limite marítimo entre os dois países. Participou ativamente do Grupo de Contadora para a Paz na América Central e do Movimento de Países Não-Alinhados.
Os pacotes econômicos (Plano Austral e Plano Primavera) desembocaram na hiperinflação e em saques, o que o obrigou a renunciar e antecipar a transição para o governo de Carlos Menem.
Em 1999, Alfonsín ajudou a UCR a voltar à Casa Rosada, com Fernando de La Rua. A renúncia deste em meio a um caos generalizado sócio-econômico, no entanto, desprestigiou novamente o partido. A partir de 2003, parte dos quadros do partido se aproximou dos Kirchner. Entre eles, Julio Cobos, vice-presidente do atual governo Cristina, convertido em principal figura da oposição durante o conflito do governo com as entidades agrárias em 2008.
Em seus últimos dias, Alfonsín aprofundou as críticas ao governo e pediu o retorno de Cobos à UCR.
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