Bernardo Kliksberg, economista e assessor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) e de vários governos, chega em cima da hora combinada para a entrevista com o Opera Mundi. Meticuloso nos movimentos e no pensamento, deixa o sobretudo em uma cadeira, tira o quipá do bolso e o veste, em respeito ao compromisso religioso. Seu modo de falar é tranquilo, mas isso não significa que suas definições não sejam contundentes. Quase um grito, poderíamos dizer.
“Isto não condiz com a realidade”, diz o economista, referindo-se à afirmação dos organismos internacionais de que alguns países latino-americanos estariam mais bem preparados para enfrentar a crise. Ele argumenta que as boas reservas dos bancos centrais não significam muita coisa diante dos índices de pobreza e outros indicadores do continente. Garante que a crise econômica, cujo epicentro localiza em Wall Street, comprova “a derrota intelectual do neoliberalismo”, mas adverte para o perigo de sua continuidade na América Latina, “o continente mais desigual” em termos de indicadores sociais.
Por outro lado, vê com otimismo a “forte mobilização social” na América Latina, que pressiona e ao mesmo tempo oferece o respaldo político necessário a governos como os do Brasil, Argentina, Venezuela e Equador, entre outros, para que promovam “políticas anticíclicas” de grande conteúdo social.
O mundo vive uma das piores crises econômicas da história moderna. Como ela afetará nossos países?
A América Latina, infelizmente, como o mundo todo, é afetada por esta crise e continuará a sê-lo neste ano. Trata-se da pior crise dos últimos 80 anos e a queda do PIB (Produto Interno Bruto) mundial não será menor que 2%. A do PIB europeu já é de 2,5. Mas o mais importante, e o que deve ficar claro, é que se trata de uma crise gratuita, na qual todo o gênero humano passa por um sofrimento inenarrável, graças ao que (Barack) Obama define como a ganância desenfreada de Wall Street. Segundo os últimos indicadores sociais do Banco Mundial, neste ano morrerão 400 mil crianças a mais do que as 9,6 milhões que morrem anualmente de causas evitáveis. E o número de pessoas vítimas da fome passou de 1 bilhão. A própria população dos Estados Unidos enfrenta uma situação que a Argentina viveu em 2002, quando 7 milhões de pessoas passaram da classe média à pobreza. Os Estados Unidos passam a ter hoje um desemprego entre 8% e 9%, o que implica a eliminação de 23 mil empregos por dia. No ano passado foram eliminados mais de 4 milhões de postos de trabalho e, se somarmos os subempregados e os que já não procuram emprego, constataremos que cerca de 16% da população dos Estados Unidos, ou 30 milhões de pessoas, empobreceram. Muitas estavam bem de vida, tinham carro, casa, e agora lotam os centros de distribuição de comida para indigentes.
Na Argentina, nos anos de neoliberalismo feroz, afirmava-se que a taça dos benefícios da economia transbordaria sobre os mais necessitados. Hoje, no entanto, o que se derrama é o custo da crise.
A América Latina não pode escapar de tudo isso, e a transmissão ocorrerá por vários canais. O canal central é a deterioração das exportações e dos preços do intercâmbio, pois se reduz a demanda das matérias-primas que a América Latina produz e exporta, e os preços estão baixando. Um segundo canal é a queda dos investimentos dos grupos financeiros, que despencaram para um terço em relação a 2008. O terceiro canal é a diminuição do turismo, que para muitos países tem uma influência importante. E um quarto canal, importante para o Brasil, para o Equador, são as remessas migratórias – aquelas dos latino-americanos pobres que conseguem viajar e se instalar nos Estados Unidos, trabalhar e enviar dólares à família em seus países de origem. Só em 2007, este canal respondeu por 5 bilhões de dólares. Foi a segunda maior entrada de divisas no México, por exemplo. Com esta crise, as remessas já caíram cerca de 10%, o que significa muitíssimo dinheiro. O cálculo é que os imigrantes pobres apoiavam 100 milhões dos 550 milhões de habitantes da América Latina, ou seja, eram a principal rede de proteção social.
Por todos esses motivos, a economia do continente sofre neste ano, e as estimativas de baixa, revisadas constantemente, vão se agravando. A Cepal dizia no ano passdo que, em 2009, a América Latina cresceria apenas 0,3%. Agora diz que cairá pelo menos 0,3%. Em uma região tão desigual, é um coquetel altamente explosivo, um mergulho do PIB no abismo. Se ele cresceu 4,7% nos últimos cinco anos e encolherá 0,3% em 2009, sofrerá uma queda muito forte e terá um efeito explosivo demais numa região desigual, porque os mais vulneráveis serão afetados.
Então por que os organismos internacionais dizem que alguns países da América Latina estão mais bem preparados para enfrentar a crise?
Este discurso não condiz com a realidade. Os prognósticos da OIT (Organização Mundial do Trabalho) dizem que a América Latina terá neste ano 4 milhões de desempregados a mais. A organização também estima que teremos mais 5 milhões dos chamados trabalhadores pobres, que têm emprego, mas não superam a linha de pobreza. Falamos de cerca de 10 milhões de pobres a mais, somando-se aos 190 milhões existentes antes da crise, por causa da situação social da América Latina. Assim, quando os organismos internacionais dizem que a América Latina está mais bem preparada para enfrentar a crise, ou que não será tão afetada, não levam em conta os dados sociais. Para eles, o montante de reserva do Banco Central é “a crifra” – mas é apenas isso, uma cifra. Por exemplo, o Peru tem um ótimo montante de reserva, mas os índices de pobreza são fenomenais e a taxa de mortalidade materna é a quinta mais alta do planeta. Esta é a realidade. Portanto, se a América Latina está ou não preparada para enfrentar a crise, é em termos de haver ou não condições para pôr em marcha políticas anticíclicas a fim de combater a crise no continente mais desigual, com políticas ativas que protejam os mais vulneráveis.
Poderíamos dizer que esta é a diferença entre o governo do Peru e os do Equador, Bolívia, Venezuela, Brasil e Argentina?
A diferença está na existência de uma sociedade mobilizada. Esta sociedade não permite que a política pública baixe os níveis de investimento em educação e saúde, fundamentais em tempos de crise. Os organismos internacionais pressionam por debaixo da mesa e não no discurso, como ocorre com o presidente do FMI. Por exemplo, nos países do Leste europeu foram concedidos empréstimos com condições similares às que se aplicavam a nossos países nos anos 1990, e vários governos europeus orientais já caíram. Por tudo isso a situação é explosiva, porque a estrutura de poder dos organismos internacionais não mudou apesar da forte pressão exercida por países como a Índia ou mesmo o Brasil.
Assim, a garantia para que se consiga esta proteção é uma sociedade mobilizada, que lute por políticas públicas a favor da população e ao mesmo tempo funcione como um apoio político para enfrentar as pressões de ajuste vindas tanto de fora quanto de dentro de nossos países. Com efeito, em países como Brasil, Argentina ou Equador, isso está claro, porque há sociedades mobilizadas, cada uma com suas características. Lula, por exemplo, tem uma fortaleza baseada em sua popularidade e em suas excelentes qualidades políticas. Ele montou um dos maiores programas sociais da história de seu país, o Bolsa Família, que protege mais de 50 milhões de pessoas, as mais pobres do Brasil. Mas além disso anunciou, em meio à crise, uma série de programas a médio e longo prazos, como o gigantesco programa de construção de casas conhecido como Terra de Paz para as favelas do país. Trata-se de um investimento multimilionário, e é a forma de responder às demandas de uma população mobilizada. No Equador, há os gigantescos programas de inclusão da população indígena do presidente Rafael Correa, cujo governo é fortemente apoiado na participação cidadã e promoveu muitas ações de base. É um processo interativo, pois a mobilização das pessoas é a maneira de enfrentar as ofensivas fenomenais dos fortes setores conservadores existentes nas sociedades latino-americanas, que contam com o respaldo internacional, e da ideologia neoliberal, que foi derrotada em Wall Street mas continua a circular com muita força na América Latina através dos meios de comunicação. O melhor é que esta sociedade seja consciente da necessidade de medidas anticíclicas para enfrentar a crise.
Leia a segunda parte da entrevista:
Kliksberg, parte 2: Neoliberalismo foi derrotado intelectualmente, mas não na política
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