Quarta-feira, 14 de maio de 2025
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A criação de um mecanismo de pagamento alternativo ao dólar norte-americano, conhecido como o processo de “desdolarização”, foi uma das questões mais levantadas na 16ª Cúpula do BRICS, encontro que envolveu a participação de 36 países em Kazan, na Rússia. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, inclusive, tratou do assunto como uma das prioridades brasileiras durante sua exposição por videoconferência, afirmando que a medida “não pode ser mais adiada”.

As discussões envolvendo a pauta são cruciais, uma vez que a formação do BRICS foi justamente motivada pela insatisfação dos países que compõem o Sul Global com a estrutura de governança econômica mundial, dominada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial, conforme apontou o cientista político Jackson Ribeiro, doutorando em economia política pelo Programa de Pós-graduação em Economia Política Mundial da UFABC (Universidade Federal do ABC).

A Opera Mundi, o especialista avaliou que a dependência do dólar diminuirá conforme a “erosão da supremacia dos Estados Unidos” ocorre, sendo este um processo para o qual o agrupamento “deseja contribuir”. Mas evitando, na medida do possível, confrontos diretos com a principal nação capitalista.

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“O bloco BRICS possui uma influência considerável na economia mundial, congregando mais de 45% da população global, mais de um terço do PIB mundial e uma parcela significativa da produção de petróleo e das exportações de matérias-primas essenciais. Apesar da desdolarização representar um objetivo ambicioso e complexo, o BRICS está estrategicamente posicionado para desempenhar um papel fundamental na transição para um sistema financeiro global mais equilibrado e menos ancorado no dólar norte-americano”, explicou.

Na abertura da cúpula, na quarta-feira (23/10), o chefe de Estado da Rússia, Vladimir Putin, que preside o BRICS neste ano, enalteceu o perfil das nações que integram o agrupamento e enfatizou que está se formando uma nova “ordem mundial multipolar” capaz de fortalecer sua autoridade em assuntos globais, sobretudo nos econômicos.

Nos bastidores, o líder do Kremlin demonstrou apoio em manter a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff na liderança do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), popularmente conhecido como “Banco do BRICS”, até julho de 2025. Putin lembrou que a instituição financiou mais de 100 projetos em um total de US$ 33 bilhões (R$ 187,75 bilhões) desde 2018.

Nesse contexto, Ribeiro destacou que o NDB se configura como um “pilar essencial” ao Sul Global. Os 13 novos membros como “Estados parceiros” no BRICS incluídos nesta cúpula, portanto, terão acesso a recursos e à expertise de um banco especialmente destinado a investir em projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável.

“O Novo Banco de Desenvolvimento […] atua como um potencial precursor de uma nova ordem mundial. Neste cenário, as economias emergentes avançam com agendas próprias por meio desta inovação institucional, distanciando-se progressivamente das instituições estabelecidas de Bretton Woods”, afirmou o cientista político.

BRICS Summit Photo Gallery
O presidente russo, Vladimir Putin, o presidente chinês, Xi Jinping, à esquerda, e o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, à direita, durante oportunidades de fotos conjuntas para os líderes do BRICS na 16ª Cúpula do BRICS, em Kazan
A ausência de Lula

A notícia da ausência do presidente Lula na cúpula foi lamentada por Putin. A viagem do presidente brasileiro foi cancelada de última hora após ter sofrido um acidente doméstico na residência do Planalto, ocasião em que foi imediatamente levado a um hospital em Brasília e recebeu cinco pontos na região da cabeça.

Por outro lado, sua ausência abriu um espaço maior para a China. O país asiático se mantém como a principal influenciador do BRICS, levando em consideração suas capacidades no espectro econômico e no cenário de inserção global se comparadas com os outros membros do bloco, conforme Ribeiro.

“Para a China, o BRICS possui uma relevância estratégica em sua política de inserção internacional, oferecendo um meio para desafiar a ordem mundial dominada pelos Estados Unidos de maneira pacífica, indireta e alinhada às normativas das economias de mercado, o que se revela crucial para os seus objetivos de ascensão pacífica e harmoniosa no palco internacional”, explicou o especialista, acrescentando que o Brasil teve um papel “mais secundário”, sendo o único país fundador do grupo que não contou com a presença física de seu chefe de Estado na cúpula.

E mais uma vez falando da ausência de Lula, quem viajou a Kazan para representar sua delegação foi o ministro das Relações Exteriores do país sul-americano, Mauro Vieira, a quem foi orientado a vetar a adesão da Venezuela no BRICS, uma informação antecipada pela imprensa brasileira antes da definição final dos novos integrantes.

Segundo Ribeiro, a não inclusão do país de Nicolás Maduro, que compartilha de uma relação historicamente amistosa com o governo brasileiro, é “prejudicial aos interesses econômicos do Brasil”, no âmbito da integração latino-americana e caribenha.

“A decisão do Brasil de exercer tal veto demonstrou uma preferência por responder a questões imediatas e conjunturais — especificamente um conflito decorrente de declarações proferidas por Brasil e Venezuela — em prejuízo da sólida parceria histórica com o referido país. A condução da política externa de uma nação não deve ser limitada a reações baseadas exclusivamente em circunstâncias imediatas e transitórias”, avaliou.

Ampliação do BRICS

As lideranças do BRICS definiram a adesão de 13 países para se juntar ao grupo na categoria de “Estados parceiros”. São eles: Argélia, Bielorrússia, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Indonésia, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã.

De acordo com as autoridades russas, mais de 30 nações haviam manifestado interesse de colaborar com o grupo.

Para Ribeiro, tal expansão se constitui como uma medida “crucial” na consolidação da nova “ordem mundial multipolar”, uma vez que denota uma representatividade mais robusta em questões de escopo global, maior precisão às necessidades da comunidade internacional e heterogeneidade das economias emergentes.

“O incremento no número de membros potencializa a influência econômica do BRICS em âmbito mundial. Ademais, tal crescimento favorece o intercâmbio comercial e a colaboração econômica entre os membros, culminando em um desenvolvimento mais harmonioso e sustentável”, afirmou o cientista político, acrescentando que a associação de novos membros impulsiona a capacidade do agrupamento de fomentar uma “Ordem Internacional mais justa”.

Confira trechos da entrevista com Jackson Ribeiro:

Opera Mundi: o BRICS defende e coloca na pauta comercial a questão da desdolarização. Como você avalia essa possibilidade? Ela é possível? Qual o papel do BRICS no cenário econômico mundial?

Jackson Ribeiro: a formação do agrupamento BRICS foi motivada pela insatisfação dos países do hemisfério sul com a estrutura de governança econômica mundial, a qual é dominada pelas instituições de Bretton Woods, nomeadamente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. O grupo tem como objetivo a implementação progressiva de estratégias para promover o uso de suas moedas nacionais em transações internacionais, visando a redução da hegemonia do dólar norte-americano.

Contudo, a transição para um sistema menos dependente do dólar é um processo de longa duração, considerando a predominância do dólar nas reservas cambiais e no comércio internacional, além de seu papel central na manutenção da estabilidade do sistema financeiro global. A moeda norte-americana, representativa da nação capitalista mais influente do planeta, os EUA, mantém sua posição dominante. A diminuição da dependência do dólar ocorrerá paralelamente à erosão da supremacia dos EUA, um processo no qual o BRICS deseja contribuir, embora de maneira prudente para evitar confrontos diretos.

O bloco BRICS possui uma influência considerável na economia mundial, congregando mais de 45% da população global, mais de um terço do PIB mundial e uma parcela significativa da produção de petróleo e das exportações de matérias-primas essenciais. Em síntese, apesar da desdolarização representar um objetivo ambicioso e complexo, o BRICS está estrategicamente posicionado para desempenhar um papel fundamental na transição para um sistema financeiro global mais equilibrado e menos ancorado no dólar norte-americano.

Houve um protagonismo maior de Rússia e China durante a 16ª Cúpula do BRICS? Podemos dizer que a ausência de Lula no encontro possibilitou esse cenário?

Certamente. A ausência de Lula na Cúpula contribuiu para um papel menos destacado e mais secundário do Brasil no evento, sendo notável que o Brasil foi a única nação fundadora do grupo que não contou com a presença de seu Chefe de Estado em Kazan.

A Federação Russa desempenhou um papel central, em virtude de ser o país anfitrião do encontro e devido a circunstâncias atuais, que atraem o foco midiático para o conflito na Ucrânia.

Contudo, em uma análise estrutural, a República Popular da China mantém-se como a principal influenciadora do grupo. Ao discutir o BRICS, é imperativo salientar a significativa disparidade de capacidades da China, tanto no espectro econômico quanto no cenário de inserção global, em comparação com as demais nações integrantes.

Para a China, o BRICS possui uma relevância estratégica em sua política de inserção internacional, oferecendo um meio para desafiar a ordem mundial dominada pelos Estados Unidos de maneira pacífica, indireta e alinhada às normativas das economias de mercado, o que se revela crucial para os seus objetivos de ascensão pacífica e harmoniosa no palco internacional.

Como você avalia o veto do Brasil à entrada da Venezuela ao BRICS? Ele pode prejudicar a diplomacia entre os países, levando em consideração que ambos defendem uma integração latino-americana?

Considero prejudicial aos interesses estratégicos do Brasil, particularmente em sua posição de liderança na América do Sul e no âmbito mais amplo da integração latino-americana e caribenha.

A decisão do Brasil de exercer tal veto demonstrou uma preferência por responder a questões imediatas e conjunturais — especificamente um conflito decorrente de declarações proferidas por Brasil e Venezuela — em prejuízo da sólida parceria histórica com o referido país. A condução da política externa de uma nação não deve ser limitada a reações baseadas exclusivamente em circunstâncias imediatas e transitórias.

Cuba e Bolívia entraram na lista dos países aprovados para o BRICS. São bons nomes? 

A integração de Cuba e Bolívia ao BRICS reveste-se de significativa importância para o Brasil, considerando as posições estratégicas que ambos os países ocupam na América Latina. Tal inclusão promete reforçar a influência do bloco na região. Ademais, a diversificação alcançada por meio da adesão dessas nações contribui para a ampliação das perspectivas e experiências no seio do BRICS, potencializando as discussões e a colaboração mútua.

A associação de outros membros ao grupo fortalece sua capacidade de fomentar uma Ordem Internacional mais justa e multipolar, consolidando o BRICS como um marco referencial para os países do Sul Global no que tange à cooperação em esferas críticas como comércio, investimento, desenvolvimento sustentável e inovação tecnológica.